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Você sabe como a dor acontece? Talvez deveria.

Você sabe como a dor acontece?

Em termos simples, a “fabricação” da dor resulta de um processo envolvendo sinais elétricos que sobem e descem por determinadas vias neurais do local onde a lesão ocorre até as regiões superiores do cérebro. Eis o ponto de partida para se compreender claramente a dor aguda, a dor mais comum. E, também, oferece subsídios essenciais para se compreender a dor sem lesão aparente, como é o caso da dor crônica. Compreender os caminhos da dor pode ajudar os médicos a gerenciar melhor as síndromes de dor crônica. E certamente ajuda o paciente com dor crônica a entender melhor os “mistérios” que caracterizam a sua condição, facilitando a compreensão do diagnóstico e do tratamento prescrito, por sinal diferente do convencional.

“O tempo cura nada. Apenas nos ensina a conviver com a dor”.

A dor é uma das queixas médicas mais comuns, assume várias formas e permanece incompletamente compreendida. Apesar de nosso conhecimento crescente dos mecanismos da dor e de um arsenal crescente de medicamentos para a dor, muitas questões permanecem. Existem muitas teorias sobre a dor ao longo da história. Uma teoria prevalecente é que a dor é uma mensagem transmitida da periferia para o cérebro sem nenhuma modulação intermediária.1

Na literatura, a dor assim entendida recebe o nome de dor nociceptiva. Dor nociceptiva é uma sensação que pode ser expressa em graus de desconforto provinda dos nociceptores, receptores específicos de sinais de perigo que, uma vez comunicadas ao cérebro, este pode “transformá-las” em dor. É o tipo de dor mais comum e está relacionada com o grau de lesão dos tecidos.

Na dor nociceptiva há dois tipos de estímulos que podem levar à geração dos potenciais de ação nos axônios desses nervos:

  1. Variações mecânicas ou térmicas que ativam diretamente as terminações nervosas livres ou receptores.
  2. Fatores libertados pelas células inflamatórias, tais como a bradicinina, a serotonina, a histamina e as enzimas proteolíticas.

Hoje, entendemos que os sinais de dor viajam ao longo de uma rede neural complexa.23

Rede neural complexa

O trato espinotalâmico lateral se concentra na transmissão da sensação de dor e temperatura, enquanto o trato espinotalâmico anterior carrega informações relacionadas ao toque bruto e à sensação de pressão firme em direção ao tálamo no cérebro.

A transmissão de um sinal de dor através do sistema neural é regulada por uma interação bioquímica complexa que pode entregar o sinal de dor com fidelidade ou pode amplificá-lo ou inibi-lo. Essa noção de como a dor é produzida, mais ampla e realista, permite considerar outros tipos de dor (ex.: neuropática), além da dor nociceptiva.

 A Marco Teórico da Transmissão da Dor

Em termos muito simples, a dor é um sinal que envolve a transmissão de informações de neurônio para neurônio da periferia ao cérebro, através das sinapses. E processos fisiológicos podem fazer com que esses sinais de dor sejam ampliados ao longo de certas vias: uma excitatória (que ascende por tratos do Sistema Nervoso Central) e outra inibitória (que desce).

A noção deve-se à dupla Patrick Wall, neurocientista britânico, e Robert Melzack, psicólogo canadense. Em 1965, eles propuseram a Teoria do Controle do Portão da Dor.

Uma representação visual do circuito de dor proposto por Wall e Melzack é mostrada em seguida.

Teoria do portão de controle da dor

Em suma, a teoria indica que um sinal de dor é enviado por uma ferida (ou lesão) nos tecidos ao cérebro pelo sistema nervoso. E que ela pode sofrer alteração pelo caminho, em último termo amplificando ou diminuindo a percepção da dor.

Simplificando ao máximo, o caminho seguido por um sinal de perigo em potencial até ele se transformar em dor (ou não) é o seguinte:

  • Em havendo uma ameaça (efetivada ou não) um sinal nociceptivo é carregado por neurônios excitatórios nas fibras nervosas aferentes ascendentes.
  • Fibras aferentes descendentes, todavia, podem modular os sinais de dor na substância gelatinosa na medula espinhal (ou corno dorsal). Estes podem ser bloqueados por sinais não nociceptivos a cargo de neurônios inibitórios.
  • Os sinais nociceptivos e não nociceptivos são somados dentro da substância gelatinosa na medula espinhal.
  • Um sinal de dor é transmitido ao cérebro se e quando os sinais nociceptivos superarem os sinais não nociceptivos.

A Teoria do Portão de Controle da Dor propõe é, como seu nome indica, uma teoria. Alguns ainda a acham controversa, mas para efeitos de explicar a participação das vias neurais, neurônios e sinapses etc., na percepção da dor, ela é didática.

Sinalização Normal

Para compreender as vias da dor, devemos primeiro compreender a normosensibilidade, ou a transmissão normal e apropriada de um sinal de dor. As entradas ou sinais viajam de neurônio para neurônio; conforme o sinal atravessa as sinapses, ele é afetado por uma variedade de neurotransmissores e neuromoduladores. Está além do escopo deste artigo discutir a bioquímica envolvida e, de fato, ela não está completamente compreendida e elucidada. Para nossos propósitos, reconhecemos que os inputs de um neurônio são retransmitidos para os receptores apropriados no próximo neurônio. (Figura 1)

Figura 1

Transmissão normal de um sinal de dor, onde os potenciais de ação pós-sinápticos são exatamente equivalentes aos potenciais de ação pré-sinápticos.

Normossensibilidade

Preste atenção às tarjas brancas com postes verticais. Elas representam graficamente sinais de dor normais, cujos potenciais de ação pré-sináptica são exatamente equivalentes aos potenciais de ação pós-sináptica. Em outras palavras, em condições normais o sinal de perigo passível de vir a ser percebido como dor pelo cérebro não é modulado, inibido ou amplificado na passagem sináptica.

A seguir, três estados de dor anormais: Sensibilização Central, Alodinia e Hiperalgesia.

Sensibilização Central

Em muitas síndromes clínicas, a dor não é mais protetora. A dor nessas situações surge espontaneamente, pode ser provocada por estímulos normalmente inócuos (alodinia), é exagerada e prolongada em resposta a estímulos nocivos (hiperalgesia) e se espalha além do local da lesão (hiperalgesia secundária). A sensibilização central forneceu uma explicação mecanicista para muitas das alterações temporais, espaciais e de limiar na sensibilidade à dor em contextos de dor clínica aguda e crônica e destacou a contribuição fundamental das alterações no Sistema Nervoso Central (SNC) para a geração de sensibilidade anormal à dor.

A sensibilização pode ocorrer a nível periférico ou no SNC. Convém saber que ambos estados de sensibilização podem coexistir no mesmo paciente.

Na sensibilização periférica, os nociceptores periféricos tornam-se cada vez mais excitáveis ​​e aumentam os sinais de dor transmitidos ao SNC. A sensibilização central é essencialmente a mesma coisa, exceto que são os neurônios do SNC que são excessivamente excitáveis. O resultado é que um estímulo normal ou uma dor leve torna-se amplificado dentro da rede neural a ponto de o sujeito perceber uma dor moderada ou mesmo intensa.

Por meio da interação bioquímica de vários neurotransmissores e neuromoduladores (que, por sua vez, não são completamente compreendidos), o sinal pré-sináptico é amplificado através da sinapse. Essa amplificação eventualmente cresce em uma vasta multiplicação do sinal original pós-sináptico. Isso também ativa os canais de sódio dependentes de voltagem e outros processos.

Figura 3

A dor é amplificada ao nível do sistema nervoso central.

Sensibilização Central

O que é notável sobre a sensibilização central é que não precisa haver dano fisiopatológico aos próprios neurônios. Em muitos aspectos, a sensibilização central se assemelha à sensibilidade normal no sentido de que os sinais recebidos cruzam a sinapse, modificados por neurotransmissores e neuromoduladores, para seus receptores pós-sinápticos apropriados. A mudança que leva a um aumento do sinal é bioquímica. Assim, embora a sensibilização periférica e central frequentemente se apresentem clinicamente como condições de longa duração, elas geralmente são reversíveis – pelo menos no que diz respeito à rede neural.

Alodinia

A alodinia é uma condição clínica particularmente angustiante em que a pessoa sente os estímulos normais como dolorosos. Pacientes com alodinia podem sentir até mesmo um toque leve ou uma cutucada suave como dor intensa (Figura 4). A alodinia pode ser comparada à hiperalgesia, pois os sinais viajam pela rede neural com fidelidade relativamente boa até encontrar um neurônio específico que amplifica maciçamente os sinais de dor. A principal diferença entre alodinia e hiperalgesia é que as entradas na alodinia são inócuas (toque, cutucada, temperatura moderada), enquanto a hiperalgesia envolve estímulos nocivos.

A alodinia não é condição para a hiperalgesia existir. Alodinia e hiperalgesia não são dois etapas consecutivas de um mesmo processo.

Figura 4

As sensações normais são amplificadas e experimentadas como dor.

Alodinia

Hiperalgesia

A hiperalgesia ocorre quando o paciente tem uma experiência intensificada de dor. Ela é característica de estados de dor crônica. Um bom exemplo de hiperalgesia no contexto clínico pode ser a dor associada a um dedo infectado. Os sinais de dor viajam ao longo da rede neural e podem ser transmitidos com boa fidelidade até o ponto em que o neurônio encontra o ponto de infecção. Os sinais são transmitidos, mas as entradas pré-sinápticas são extensamente ampliadas pelo neurônio na infecção (Figura 2).

Figura 2

As sensações normais são amplificadas e experimentadas como dor.

Hiperalgesia

Assim, a dor encontrada com a pressão exercida sobre uma área de tecido infectado é ampliada pela escalada neuronal desse sinal. A hiperalgesia pode ser um mecanismo adaptativo benéfico para ajudar o corpo a proteger as feridas durante a cicatrização.

Atenção!

Alodinia e hiperalgesia são dois estados neurais diferentes e separados. Não são dois estágios num continuum de dor em ascensão, como muitos equivocadamente pensam.

O Marco Teórico da Transmissão da Dor

Porque trazer à tona a Teoria do Controle da Dor no presente artigo?

Duas razões:

  • Ela mostrou para o grande público, talvez pela primeira vez, como a dor é (mais ou menos) produzida bioquimicamente no sistema nervoso. O processo nociceptivo, como consequência de influências ascendentes (bottom up) e descendentes (top down) fluindo pelo SNP e SNC. Ambas apresentam atividade em nível molecular e ativam infinidade de neurotransmissores e outras substâncias químicas para transmitir impulsos elétricos que facilitam ou inibem a transmissão.
  • Mais importante, convém salientar que alodinia, hiperalgesia e sensibilização central são disfunções do processo doloroso normal, apresentado pela teoria. Em condições normais, a dor deveria ser proporcional ao estímulo nociceptivo, o que não ocorre quando qualquer manifestação do trio antes mencionado entra em cena. Todos e cada um deles é, mais ou menos, o resultado de um desequilíbrio sistémico, em que os sinais nociceptivos atropelam os não nociceptivos repetidamente e sem razão aparente (a ferida não piora, ao contrário, ela já cicatrizou. A consequência é, entre outras, dor crônica.

Conclusão

A compreensão das “vias da dor” pode ajudar médicos e pacientes a gerenciar melhor as síndromes de dor crônica. No mínimo, distinguindo dor aguda de dor crônica, e na melhor das hipóteses, dispondo tratamentos distintos para uma e outra. A dor crônica, por exemplo, na prática é tratada mormente com medicação (ex.: antidepressivos) no intuito de bloquear a dor. Mas hoje, graças aos achados da neurociência da dor, é sabido que o principal impulsionador da modulação descendente é o sistema límbico, lar da emoção, a afetividade etc., no cérebro; e sobre a qual a farmácia tem menos influência que o exercício, a meditação ou a terapia cognitivo comportamental. Certas condições dolorosas, tais como enxaqueca, doença falciforme e fibromialgia continuam a ser difíceis de tratar, mas a dificuldade poderia ser menor se os médicos compreendessem melhor como a dor é modulada, a importância dos fatores afetivos e, em função disso, as abordagens terapêuticas mais adequadas à pacientes com dor crônica.

Este artigo incorpora parcialmente informações fornecidas em “Desmistificando as vias da dor”, de autoria de Robert B. Raffa, Joseph V. Pergolizzi, e Dr. Robert Taylor, Jr.

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