Na maioria das culturas, a maioria dos casos de saúde mental não é reconhecida em ambientes de atenção primária.1Katon W. Depression: relationship to somatization and chronic medical illness. J Clin Psychiatry. 1984;45(3 Pt 2):4-12. Cerca de 60% dos casos de depressão não detectados anteriormente poderiam ter sido reconhecidos se os pacientes tivessem sido avaliados quanto ao transtorno de saúde mental.2Dersh J, Polatin PB, Gatchel RJ. Chronic pain and psychopathology: research findings and theoretical considerations. Psychosom Med. 2002;64(5):773-786. Numerosos estudos documentaram uma forte associação entre dor crônica e psicopatologia.3Murray CJ, Lopez AD. Alternative projections of mortality and disability by cause 1990-2020: Global Burden of Disease Study. Lancet. 1997;349(9064):1498-1504. Pesquisas anteriores mostraram que a dor crônica é mais frequentemente associada a depressão, ansiedade e transtornos somatoformes, de personalidade e uso de substâncias.4Murray CJ, Lopez AD. Alternative projections of mortality and disability by cause 1990-2020: Global Burden of Disease Study. Lancet. 1997;349(9064):1498-1504. Nesse blog eu tenho destacado essa relação comórbida em várias ocasiões. Aqui o foco não é a depressão em geral, mas o Transtorno Depressivo Maior.
“Você pode sobreviver a quase tudo, desde que veja o fim à vista. Mas a depressão é tão insidiosa e aumenta diariamente que é impossível ver o fim.”
Esse post é baseado numa matéria de autoria de dois psicólogos americanos: David Cosio, PhD, e L.M. Meshreki, PhD. Se você não for psicólogo ou psiquiatra – ora, ninguém é perfeito – convém ler antes os três parágrafos seguintes.
Conhecimentos básicos
Um episódio depressivo pode ser categorizado como leve, moderado ou grave, a depender da intensidade dos sintomas. Um indivíduo com um episódio depressivo leve terá alguma dificuldade em continuar um trabalho simples e atividades sociais, mas sem grande prejuízo ao funcionamento global. Durante um episódio depressivo grave, é improvável que a pessoa afetada possa continuar com atividades sociais, de trabalho ou domésticas.
Uma distinção fundamental também é feita entre: | |
Transtorno depressivo recorrente | Esse distúrbio envolve repetidos episódios depressivos. Durante esses episódios, a pessoa experimenta um humor deprimido, perda de interesse e prazer e energia reduzida, levando a uma diminuição das atividades em geral por pelo menos duas semanas. Muitas pessoas com depressão também sofrem com sintomas como ansiedade, distúrbios do sono e de apetite e podem ter sentimentos de culpa ou baixa autoestima, falta de concentração e até mesmo aqueles que são clinicamente inexplicáveis. |
Transtorno afetivo bipolar | Esse tipo de depressão consiste tipicamente na alternância entre episódios de mania e de depressão, separados por períodos de humor normal. Episódios de mania envolvem humor exaltado ou irritado, excesso de atividades, pressão de fala, autoestima inflada e uma menor necessidade de sono, bem como a aceleração do pensamento. |
O episódio depressivo não pode ser atribuído a outro transtorno psicológico (do espectro da esquizofrenia ou bipolar), condição física ou uso de substâncias.
O diagnóstico de transtorno depressivo maior é baseado na presença de um episódio único ou recorrente, gravidade atual, características psicóticas e estado de remissão. Os transtornos depressivos incluem vários outros diagnósticos, incluindo transtorno disfórico pré-menstrual, transtorno depressivo induzido por substância e transtorno depressivo devido a outra condição médica.
Depressão e Dor Crônica
A depressão é o distúrbio de saúde mental que gerou mais pesquisa e interesse teórico entre as pessoas que sofrem de dor crônica.5Murray CJ, Lopez AD. Alternative projections of mortality and disability by cause 1990-2020: Global Burden of Disease Study. Lancet. 1997;349(9064):1498-1504. É a 4ª principal causa de incapacidade em todo o mundo.6Kessler RC, Berglund P, Demler O, et al. The epidemiology of major depressive disorder: results from the National Comorbidity Survey Replication. JAMA. 2003;289(23):3095-3105. A prevalência de 12 meses de transtorno depressivo maior (TDM) nos EUA é de aproximadamente 7 %, com diferenças marcantes por faixa etária (18 a 29 anos sofre uma taxa 3 vezes maior do que aqueles com mais de 60 anos) e sexo (as mulheres sofrem uma taxa 1,5 a 3 vezes maior que os homens).7Bair MJ, Robinson RL, Katon W, Kroenke K. Depression and pain comorbidity: a literature review. Arch Intern Med. 2003;163(20):2433-2445.
Em uma revisão recente da literatura, a prevalência de sintomas de dor em pacientes com depressão variou de 15% a 100% (média de 65%).8Katon W, Schulberg H. Epidemiology of depression in primary care. Gen Hosp Psychiatry. 1992;14(4):237-247. A prevalência média de depressão maior concomitante em pacientes identificados como tendo dor variou de 5% a 10% (na atenção primária)9Magni G, Merskey H. A simple examination of the relationships between pain, organic lesions, and psychiatric illness. Pain. 1987;29(3):295-300. para 85% (em clínicas odontológicas que abordam a dor facial) – criando um aumento quase linear na prevalência de depressão da comunidade para amostras médicas de internação.10Katon W, Schulberg H. Epidemiology of depression in primary care. Gen Hosp Psychiatry. 1992;14(4):237-247.
Os pesquisadores descobriram que quando uma condição de dor é mais definida (por exemplo, neuropatia periférica), há menos depressão relatada em comparação com a dor sem explicação médica.11Kroenke K, Price RK. Symptoms in the community: prevalence, classification, and psychiatric comorbidity. Arch Intern Med. 1993;153(21):2474-2480.
Por outro lado, a pesquisa também indica que os sintomas de dor estão associados a um risco duas vezes maior de coexistência com a depressão.12Von Korff M, Dworkin SF, Le Resche L, Kruger A. An epidemiologic comparison of pain complaints. Pain. 1988;32(2):173-183.
Além disso, pacientes com múltiplos sintomas de dor têm 3 a 5 vezes mais probabilidade de estar deprimidos do que pacientes sem dor.13Carroll LJ, Cassidy JD, Côté P. The Saskatchewan Health and Back Pain Survey: the prevalence and factors associated with depressive symptomatology in Saskatchewan adults. Can J Public Health. 2000;91(6):459-464. A associação entre depressão e dor também se fortalece à medida que a gravidade de qualquer uma das condições aumenta.14Lamb SE, Guralnik JM, Buchner DM, et al. Factors that modify the association between knee pain and mobility limitation in older women: the Women’s Health and Aging Study. Ann Rheum Dis. 2000;59(5):331-337.15Moldin SO, Scheftner WA, Rice JP, Nelson E, Knesevich MA, Akiskal H. Association between major depressive disorder and physical illness. Psychol Med. 1993;23(3):755-761.16Betrus PA, Elmore SK, Hamilton PA. Women and somatization: unrecognized depression. Health Care Women Int. 1995;16(4):287-297.
A depressão tem sido associada a uma série de resultados ruins de dor e prognósticos piores.17Moldin SO, Scheftner WA, Rice JP, Nelson E, Knesevich MA, Akiskal H. Association between major depressive disorder and physical illness. Psychol Med. 1993;23(3):755-761.18Wells KB, Golding JM, Burnam MA. Affective, substance use, and anxiety disorders in persons with arthritis, diabetes, heart disease, high blood pressure, or chronic lung conditions. Gen Hosp Psychiatry. 1989;11(5):320-327.19Burton AK, Tillotson KM, Main CJ, Hollis S. Psychosocial predictors of outcome in acute and subchronic low back trouble. Spine (Phila Pa 1976). 1995;20(6):722-728.20Geerlings SW, Twisk JW, Beekman AT, Deeg DJ, van Tilburg W. Longitudinal relationship between pain and depression in older adults: sex, age, and physical disability. Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol. 2002;37(1):23-30. O prognóstico de depressão comórbida e dor é ruim em comparação com o prognóstico para indivíduos com depressão sem dor.21Bao Y, Sturm R, Croghan TW. A national study of the effect of chronic pain on the use of health care by depressed persons. Psychiatr Serv. 2003;54(5):693-697. De fato, um estudo recente de base populacional descobriu que pessoas com depressão e dor concomitantes iniciaram mais visitas a médicos e tiveram custos médicos totais mais altos do que pessoas com apenas depressão.22Damush TM, Wu J, Bair MJ, Sutherland JM, Kroenke K. Self-management practices among primary care patients with musculoskeletal pain and depression. J Behav Med. 2008;31(4):301-307.
Pacientes com depressão e dor comórbidas enfrentam mais desafios no desenvolvimento de habilidades de autogerenciamento.23Coulehan JL, Schulberg HC, Block MR, Janosky JE, Arena VC. Medical comorbidity of major depressive disorder in a primary medical practice. Arch Intern Med. 1990;150(11):2363-2367.24Ciechanowski PS, Katon WJ, Russo JE. Depression and diabetes: impact of depressive symptoms on adherence, function, and costs. Arch Intern Med. 2000;160(21):3278-3285.25Gallagher RM1, Verma S. Managing pain and comorbid depression: a public health challenge. Semin Clin Neuropsychiatry. 1999;4(3):203-203. A depressão e a dor crônica exacerbam uma à outra, compartilham vias biológicas e neurotransmissores e respondem a tratamentos semelhantes.²³˒²⁴ Portanto, um modelo de tratamento da dor que incorpora a avaliação e o tratamento da depressão parecem necessários para resultados ótimos.
O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – 5ª Edição (DSM-5) também contém alguns novos transtornos depressivos, incluindo o transtorno disruptivo da desregulação do humor e alguns transtornos modificados, como o transtorno depressivo persistente (anteriormente conhecido como transtorno distímico). A característica comum desses transtornos é a incidência de tristeza, sentimentos de vazio e/ou irritabilidade e alterações somáticas e cognitivas que afetam significativamente a função do indivíduo. O que difere entre eles é a duração, o momento ou a etiologia presumida.26Ballenger JC, Davidson JR, Lecrubier Y, et al. Consensus statement on transcultural issues in depression and anxiety from the International Consensus Group on Depression and Anxiety. J Clin Psychiatry. 2001;62 Suppl 13:47-55.
Muitos estudos de pacientes com dor crônica documentaram uma alta prevalência de transtorno depressivo maior (TDM).
Uma pesquisa americana abrangendo 3.243 indivíduos avaliou a prevalência de Condição Física Dolorosa Crônica (CPPC) e transtorno depressivo maior (TDM) na população em geral. Ela atingiu 49% – ou seja, em cada 2 indivíduos, 1 apresentava essas duas condições. Em 57,1% dos casos, a dor apareceu antes do TDM. A intensidade da dor foi aumentada por falta de sono, estresse e cansaço em indivíduos com TDM. Estar confinado à cama, tirar licença médica e a interferência da dor com o funcionamento diário foram duas vezes mais frequentes entre os indivíduos com TDM com CPPC do que em indivíduos sem TDM com CPPC. Indivíduos obesos com CPCC tiveram 2,6 vezes mais chances de ter TDM.27[Internet] Pubmed.ncbi.nlm.nih.gov. Acesse o link.
Em síntese: a dor está altamente ligada ao transtorno depressivo.
Apêndice
A definição do Transtorno Depressivo (TDM) mudou com a publicação do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5).28Ballenger JC, Davidson JR, Lecrubier Y, et al. Consensus statement on transcultural issues in depression and anxiety from the International Consensus Group on Depression and Anxiety. J Clin Psychiatry. 2001;62 Suppl 13:47-55.
Como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, 4ª edição (DSM-IV) foi influenciado principalmente pela abordagem neo-Kraepeliniana, sua abordagem categórica para definir transtornos mentais foi criticada do ponto de vista da neutralidade etiológica.
No contexto de preencher a lacuna entre “sintomatologia baseada em etiologias presumidas” e “etiologias fisiopatológicas identificáveis”, o conteúdo da 5ª edição, o DSM-5, foi revisado para incorporar uma combinação de abordagens categóricas e dimensionais. A mudança de nota mais notável em relação à classificação diagnóstica dos transtornos depressivos no DSM-5 é a divisão dos transtornos do humor em transtornos bipolares e transtornos depressivos, o que está de acordo com a desconstrução do dualismo kraepeliniano para as psicoses. Os especificadores transdiagnósticos “com características mistas”, “com características psicóticas” e “com angústia ansiosa” são introduzidos para descrever as relações de transtornos depressivos com transtornos bipolares, esquizofrenia e transtorno de ansiedade generalizada, respectivamente, de maneira dimensional.
A redução do limiar diagnóstico para transtorno depressivo maior (TDM) pode ser causada pela adição de “desesperança” aos descritores subjetivos de humor depressivo e a eliminação de “exclusão de luto” da definição de TDM. Uma vez que a heterogeneidade do TDM é equivalente à analogia wittgensteiniana dos “jogos”, os diferentes tipos de TDM estão relacionados não por uma única característica essencial, mas sim por “semelhança familiar”. As análises de rede dos sintomas de TDM podem, portanto, precisar de uma revisão mais aprofundada para elucidar as conexões entre os sintomas inter-relacionados e outros elementos clínicos.29[Internet] Ncbi.nlm.nih.gov. Acesse o link.
2 respostas
Bom dia!
Gostaria de saber como posso ajudar a minha irmã que tá com depressão e não quer ter contato,com os irmãos.
Como devemos ajudar?
Dicas sobre isso há centenas publicadas na internet. Não faz mal conhecê-las se você quer saber como se comportar etc. Porém, o caminho mais prudente e sólido é um tratamento de terapia cognitivo-comportamental, se a dor crônica for um fator importante no estado mental da sua irmã. Se não for esse o caso, consulte um(a) psiquiatra porque o indicado parece ser psicoterapia – e assim sendo há dezenas de alternativas terapêuticas a seguir.
Veja: https://www.dorcronica.blog.br/a-gestao-da-depressao-em-pacientes-com-dor-cronica-o-tratamento/