A flexibilização do isolamento social começa em São Paulo dentro de duas semanas. Um plano de desmonte “baseado na ciência”, fiquemos sossegados. Não há detalhes, porém, exceto que as coisas “…serão feitas aos poucos, e dependendo do que haverá mais adiante”. Algumas dessas coisas, todavia, podem ser previstas já: por exemplo, a duvidosa contribuição da capacidade de testagem a uma das duas metas do plano, que é a de manter a curva epidemiológica – a dos infectados – sob controle. (A outra meta é dispor de camas suficientes para os mais graves etc,). Este post apresenta argumentos nesse sentido.
“É uma lei imutável nos negócios que palavras são palavras, explicações são explicações, promessas são promessas – mas apenas o desempenho é a realidade.”
A fotografia mostra profissionais de saúde em Recife que apresentaram sintomas de estar com Covid 19, se aglomerando para fazer o teste de coronavírus.
Ontem, o Governador de São Paulo apresentou o seu plano de flexibilização do isolamento social. Muito bem apresentado, e como ele gosta de repetir até o cansaço: fundamentado em ciência e bom senso etcétera.
Mesmo rebaixando a quarentena dos 51% de compliance para uma “quarentena heterogênea” – algumas regiões sim, outras não – ele garantiu que “a curva edpidemiológica (do Covid 19) e a capacidade de tratar os pacientes estarão sob controle”.
O fardo do Governador, e dos médicos e cientistas do Centro de Contingência do Coronavírus que o assessoram, é monumental e seria irresponsável criticar sem dados. Ele(s) devem ter suas razões e suponho que sejam boas.
Contudo, desculpando a ignorância do macaco, alguma dúvidas me assaltam. Quais são os pressupostos sobre os três alicerces de um plano de flexibilização como esse, num estado do tamanho e complexidade como o paulista? Refiro-me à capacidade de testagem, a detecção da circulação do vírus (pela Grande São Paulo, pelos municípios) e o volume de camas e equipamentos disponíveis do Sistema de Saúde?
Nesse post irei me concentrar exclusivamente na capacidade de testagem, e no que eu e você, se ainda não estivermos sentindo sintomas do Covid 19, temos a ver com isso.
Vejamos:
- Há uma semana a mídia noticiou que a Alemanha testava 15 mil indivíduos ao dia e o Brasil 296 – por milhão de habitantes. (A bem da verdade, atualmente no Brasil já são feitos cerca de 4 mil testes por dia – ainda a metade da testagem que vem sendo feita no Chile).
- Remessas de testes vindas do exterior acabam de chegar. No Butantã demoraram um mês em zerar os (relativamente poucos) testes realizados nos últimos tempos.
- No começo do mês o Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo denunciou o Instituto Adolfo Lutz por supostas irregularidades no armazenamento de amostras que aguardam testes de coronavírus.
- Ontem uma médica, na porta de um hospital, reportou para a TV que 17% dos testes realizados teria se perdido por falhas na aplcação, manipulação, transpore, e registro (os testes eram nomeados Roberto, Maria, Edimar e só).
O despreparo e bagunça é compreensível uma vez que não se põe em pé uma estrutura de testagem coletiva de um dia para outro, porém esperar que funcione razoavelmente é algo temerário.
Ah, mas todo o exposto é uma calúnia, poderia-se alegar. E com toda razão. Desde o começo do mês somente profissionais de saúde e pacientes com o Covid 19 considerados graves fazem parte do protocolo de testagem do estado.
Então, eu e você – supondo não sermos profissionais da saúde – não seremos testados se amanhã apresentarmos sintomas insuficientemente graves? Nesse caso, como é que a curva epidêmica pode ficar tão “sob controle”?
Resposta: Calma. Há menos de duas semanas – 11 de abril – o secretário de Vigilância em Saúde, Wanderson Kleber de Oliveira, já renunciado, disse que o Brasil poderá realizar entre 30 mil e 50 mil testes, por dia, para diagnosticar a Covid-19.
Excelente, porém eu e você ainda estamos fora dessa. Essas remessas serão prioritariamente usadas para testar aleatoriamente pessoas em regiões e assim identificar as que precisam de maior atenção médica. Ah, claro… então vai aqui outra dúvida: um sistema de rastreamento e isolamento dos sintomáticos apontados pela testagem, de envergadura e sofisticação semelhante ao dos coreanos – com o seu sistema de web 5G e tudo – que se supõe necessário para atingir o objetivo de “manter a curva epidemiológica sob controle”, já está instalado? Foi testado? Funciona bem? (E se funcionar bem, o sistema médico ora colapsando em vários municípios paulistas terá a capacidade de atender as pessoas que a testagem aponte como sintomáticas?) Tudo calculado?
Então, de novo: com comércios e shoppings abertos com banda de música, como é que em maio, se não também em junho, pode se prometer manter a curva epidemiológica “sob controle”, apoiando-se (em boa parte) nos resultados da testagem? E isso é , desculpem…”baseado na ciência”? Ora, isso está mais para alquimia do que para ciência.