Eu prestei atenção à ligação entre a raiva e a dor crônica através dos livros do Dr. John Sarno. Há meio século, ele foi o pioneiro em uma abordagem radical para o tratamento da dor nas costas, instruindo os pacientes a se concentrarem nas emoções reprimidas como a fonte. Apenas estes acreditaram, e por conta disso, muitos obtiveram alívio.
Nos anos seguintes, a neurociência da dor foi confirmando as teses do Dr. Sarno: em suma, a raiz da fisiopatologia de muitas dores crônicas está no cérebro e qualquer tratamento de recuperação desse tipo de dor deve ter na saúde mental o seu foco principal. O que requer identificar distúrbios mentais subjacentes tais como a ansiedade, a depressão e a raiva.
Esse artigo, o primeiro de dois sobre a relação Raiva-Dor Crônica, aponta o que é a raiva e como ela é considerada do ponto de vista psiquiátrico. O segundo irá apresentar evidências científicas da presença da raiva na dor crônica e da sua influência disruptiva no ambulatório médico, respectivamente.
A raiva é uma experiência emocional que pode ser um estado de humor atual ou uma predisposição geral para sentir raiva. Em relação a outras emoções negativas, como medo, tristeza, culpa e vergonha, a raiva é a emoção mais proeminente em pacientes com dor crônica.1Fernandez E, Milburn TW. Sensory and affective predictors of overall pain and emotions associated with affective pain. Clin J Pain. 1994;10(1):3-9. Este post traça uma panorâmica sobre esse distúrbio mental e suas expressões específicas.
Quando a raiva cobra seu preço
É importante lembrar que a raiva não ocorre no vácuo, mas tem efeitos de longo alcance nas funções ocupacionais, recreativas, sociais, interpessoais e de autocuidado.2Fernandez E, Wasan A. Chapter 26: The Anger of Pain Sufferers: Attributions to Agents and Appraisals of Wrongdoings. In: Potegal M, Stemmler G, Spielberger C, eds. International Handbook of Anger. New York, NY: Springer-Verlag New York; 2010. Existem vários sinais de raiva descontrolada, incluindo: ter um temperamento explosivo / estar internado; problemas de sono; problemas alimentares; inquietação/agitação; bater; ter o desejo de prejudicar alguém; explosões verbais; sensação de perder o controle; pouca concentração; estar obcecado por um evento, pessoa ou situação.
A raiva descontrolada pode afetar negativamente a saúde física, inclusive aumentando a dor. Por exemplo, a raiva tem sido associada à inflamação, particularmente com os níveis sanguíneos de proteína c-reativa e interleucina-6.3Pederson T. Intermittent Explosive Disorder: Anger Disorder Linked to Inflammation. Accessed December 11, 2017. A raiva pode funcionar como um fator predisponente, mas também pode ser um fator precipitante, exacerbante ou perpetuante da dor.4Fernandez E, Wasan A. Chapter 26: The Anger of Pain Sufferers: Attributions to Agents and Appraisals of Wrongdoings. In: Potegal M, Stemmler G, Spielberger C, eds. International Handbook of Anger. New York, NY: Springer-Verlag New York; 2010.
Existem muitos desafios que os indivíduos que vivem com dor crônica enfrentam, incluindo ambiguidade diagnóstica, falha do tratamento e batalhas com seguradoras, empregadores e sistema legal. A dor e o sofrimento são diversos e podem assumir a forma de raiva, que, se não for tratada, pode levar a distúrbios perturbadores, de controle de impulsos e de conduta.5Fernandez E. Anxiety, Depression, and Anger in Pain: Research Findings and Clinical Options. Dallas, TX: Advanced Psychological Resources; 2002.
Quando a raiva leva a transtornos disruptivos, de controle de impulso e de conduta
Os transtornos disruptivos, de controle de impulsos e de conduta incluem condições que envolvem problemas no autocontrole de emoções e comportamentos.6American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 5th ed. Washington, DC: American Psychiatric Association; 2013. Embora outros transtornos no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5) da American Psychiatric Association (APA) também possam envolver problemas de regulação emocional e/ou comportamental, as condições no capítulo de transtornos disruptivos, de controle de impulso e de conduta são únicos no sentido de que se manifestam em comportamentos que violam os direitos de outras pessoas.7American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 5th ed. Washington, DC: American Psychiatric Association; 2013. Esses comportamentos têm o potencial de colocar um indivíduo em conflito significativo com as normas sociais ou figuras de autoridade. As causas subjacentes das perdas no autocontrole das emoções (como raiva) e comportamentos (como agressão) podem variar muito entre os transtornos.
Os transtornos disruptivos, de controle de impulso e de conduta incluem diagnósticos, como transtorno desafiador de oposição, transtorno explosivo intermitente, transtorno de conduta, piromania (incêndio), cleptomania e transtorno de personalidade antissocial.8American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 5th ed. Washington, DC: American Psychiatric Association; 2013. Essas condições representam um grande problema de saúde pública porque aumentam muito o risco de encarceramento, lesões, depressão, abuso de substâncias e morte por homicídio ou suicídio.9Loeber R, Farrington D, Stouthamer-Loeber M, Van Kammen W. Antisocial Behavior and Mental Health Problems: Explanatory Factors in Childhood and Adolescence. Mahwah, NJ: Lawrence Erlbaum Associates; 1998.
Esses distúrbios tendem a se manifestar pela primeira vez na infância ou adolescência. A prevalência de transtorno desafiador de oposição varia de 1% a 11%.10Canino G, Polanczyk G, Bauermeister JJ, Rohde LA, Frick PJ. Does the prevalence of CD and ODD vary across cultures? Soc Psychiatry Psychiatr Epidemiol. 2010;45(7):695-704. Os dados de prevalência de um ano para transtorno explosivo intermitente nos Estados Unidos são cerca de 4% a 7%,11Ortega AN, Canino G, Alegria M. Lifetime and 12-month intermittent explosive disorder in Latinos. Am J Orthopsychiatry. 2008;78(1):133-139. enquanto a prevalência de transtorno de conduta varia de 2% a 10%.12Costello EJ, Egger H, Angold A. 10-year research update review: the epidemiology of child and adolescent psychiatric disorders: I. Methods and public health burden. J Am Acad Child Adolesc Psychiatry. 2005;44(10):972-986. A prevalência de piromania ao longo da vida foi relatada como 1% em uma amostra populacional,13Blanco C, Alegría AA, Petry NM, et al. Prevalence and correlates of fire-setting in the United States: results from the National Epidemiologic Survey on Alcohol and Related Conditions (NESARC). J Clin Psychiatry. 2010;71(9):1218-1225. enquanto a prevalência de cleptomania na população em geral varia de aproximadamente 0,3% a 0,6%.14Talih FR. Kleptomania and potential exacerbating factors: a review and case report. Innov Clin Neurosci. 2011;8(10):35-39. Aproximadamente 5% a 15% da população dos EUA é incapacitada por distúrbios de controle de impulso.15Grant J. Impulse Control Disorders: A Clinician’s Guide to Understanding and Treating Behavioral Addictions. New York, NY: WW Norton & Company; 2008.
Diagnósticos relacionados à raiva
O capítulo da APA sobre transtornos disruptivos, de controle de impulso e de conduta é novo no DSM-5.16American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 5th ed. Washington, DC: American Psychiatric Association; 2013. Ele reúne transtornos que foram incluídos anteriormente em outros capítulos com foco na adolescência e no controle dos impulsos no DSM-IV.17American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 5th ed. Washington, DC: American Psychiatric Association; 2013.
Várias alterações foram feitas nos diagnósticos específicos. Os sintomas do transtorno desafiador de oposição agora são agrupados em três tipos: humor raivoso/irritável, comportamento argumentativo/desafiador e vingança.18American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 5th ed. Washington, DC: American Psychiatric Association; 2013. A mudança primária no transtorno explosivo intermitente é que os tipos de explosões agressivas agora incluem: agressão física, agressão verbal e agressão não destrutiva/não injuriosa.19American Psychiatric Association. Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders. 5th ed. Washington, DC: American Psychiatric Association; 2013. Os critérios para transtorno de conduta, piromania e cleptomania são praticamente os mesmos da edição anterior, DSM-IV. O transtorno de personalidade antissocial também está presente no novo capítulo, além do capítulo sobre transtornos de personalidade.
Nota do blog:
Nesse blog o pensamento e método do Dr. John Sarno estão acessíveis em seus livros, artigos escritos por pacientes, e posts da minha autoria. O bom doutor merece. Ele percebeu que a mente inconsciente estava ativando o sistema nervoso autônomo e que a repressão da raiva inconsciente contribuía muito para a dor. Ao orientar seus pacientes a entender a dor como um estratagema do cérebro para protegê-los das emoções mantidas represadas no cérebro – incluindo a tendência de se colocarem sob extrema pressão e estresse, raiva em destaque – a maioria deles melhorou rapidamente.
Ao longo de seus mais de 50 anos de prática no Rusk Institute of Rehabilitation na New York University, por meio de seus atendimentos clínicos no instituto, Sarno identificou causas psicossomáticas – raiva reprimida, uma das mais influentes – em inúmeros casos de dores lombares na década de 1960. Baseado nisso, ele desenvolveu e adaptou seu programa de tratamento em quatro livros best-sellers.
Por ser considerado um iconoclasta, um profissional da saúde que se atrevia a pensar diferente e a praticar o que pensava com seus pacientes, obtendo resultados extraordinários, o Dr. Sarno foi ridicularizado pelos seus colegas médicos. Estes clinicavam, conforme o aprendido na faculdade e como muitos ainda hoje, de olho nas feridas das pessoas e não nas pessoas feridas. Ironicamente, 60 anos depois da publicação do primeiro livro – traduzido por mim e acessível nesse blog – a neurociência da dor prova todo dia que ele estava mais do que certo.
Em 22 de junho de 2017, o Dr. Sarno faleceu – um dia antes de seu 94º aniversário.
Um belo obituário no New York Times relatou sua vida lendária e profundas contribuições para a ciência.