A noção de que os trabalhadores da saúde agindo na linha de frente em hospitais ou membros de suas famílias ficam mais doentes e têm maior condição de transmitir uma doença viral que a população em geral, não é correta. Você pode ser contador, açougueiro ou professor e, no entanto, ser um transmissor do novo coronavírus mais eficaz. Pelo seu próprio bem, informe-se aqui sobre os fatores que determinam o seu eventual contágio e a consequente capacidade de contagiar outros.
Eis uma questão muito prática nos tempos que correm. É sabido que muitos ainda serão infectados pelo coronavírus, mas nem todos pegarão o Covid 19 – a doença que este provoca – com a mesma intensidade. E será que esse efeito depende de quanto a pessoa se expõe ao vírus? E o quanto ela se expõe, determina o quanto fica doente?
Esclarecer essas dúvidas interessa a um profissional da saúde atuando na linha de frente hospitalar ou a uma dona de casa que acaba de perceber falta de papel higiénico em casa e precisa ir comprá-lo no supermercado. Do ponto de vista viral, qual é o risco de infecção que ambos correm?
Para se aproximar de uma resposta é necessário ter claros dois conceitos: a carga viral e a dose infecciosa. Eu vou explicá-los com ajuda de uma analogia comparando a infecção viral com a ingestão de álcool.
- Em princípio, suponhamos dois amigos, Fulano e Sicrano, saindo para a balada. Qual você acha que provavelmente ficará mais bêbado? Simples: o que beber mais que o outro. Guarde isso.
- Fulano e Sicrano saem de uma boate após terem bebido ambos exatamente o mesmo: 8 shots de whisky. Após essa dose cavalar, ambos devem estar bêbados, mas não identicamente bêbados, certo? Certo. A razão? A tolerância ao álcool de um e outro não é a mesma. Guarde isso.
Agora vejamos como o anterior nos ajuda a entender os conceitos de carga viral e dose infecciosa.
A carga viral começa a se materializar depois que a pessoa foi infectada. Num momento dado, ela é a quantidade total de vírus que uma pessoa infectada possui dentro dela… Uma definição mais dinâmica seria: o saldo entre a quantidade de vírus que a pessoa nesse momento está produzindo e potencialmente eliminando.
“O que a gente, profissional de saúde, passa hoje ao subir em um ônibus é constante: as pessoas já lhe olham estranho assim que você sobe; elas se afastam, saem de perto. É como se a gente fosse o próprio coronavírus em pessoa”, relatou uma técnica, que não quis se identificar….
Medir a carga viral de uma pessoa é o alvo de um tipo de teste do Covid 19 porque quanto maior a carga viral, maior a probabilidade de se estar infectado.
E será que a carga indica o potencial de transmissão viral que a pessoa tem? É possível afirmar que se a carga viral de Fulano for maior que a de Sicrano, então Fulano pode contaminar mais gente que Sicrano?
Parece óbvio que sim, e é por isso que os profissionais da saúde são vistos com admiração, mas também com desconfiança pelos seus amigos e vizinhos.
“O que a gente, profissional de saúde, passa hoje ao subir em um ônibus é constante: as pessoas já lhe olham estranho assim que você sobe; elas se afastam, saem de perto. É como se a gente fosse o próprio coronavírus em pessoa”, relatou uma técnica, que não quis se identificar…
Não há nada mais enganoso do que um fato óbvio.
O inventor de Sherlock Holmes sabia das coisas. No caso em pauta, a carga viral é um dos fatores que influencia a chance de se contagiar e de contagiar o próximo.
A chamada “dose infecciosa” é outro, e também é muito importante.
Voltemos a Fulano e Sicrano saindo bêbados daquela boate. Ambos beberam o mesmo, porém dificilmente estão igualmente bêbados. A razão? A tolerância ao álcool deles não é a mesma.
Igualmente, a dose infecciosa, ou o número médio de partículas virais necessárias para estabelecer uma infecção, também difere entre os dois.
“A quantidade de vírus a que estamos expostos no início de uma infecção é chamada de ‘dose infecciosa’. Para a gripe, sabemos que essa exposição inicial a mais vírus – ou a uma dose infecciosa mais alta – parece aumentar a chance de infecção e doença.”
A dose infecciosa seria como uma marca feita num termômetro viral imaginário – provavelmente genético – que temos dentro de nós. Atingida a marca, e pressupondo uma carga viral importante, a infecção viral começa. E assim, Fulano e Sicrano podem ter a mesma carga viral e, no entanto, um pode estar infectado e o outro não. A razão? Doses infecciosas diferentes.
“A carga viral é uma medida de quão brilhante o fogo está queimando em um indivíduo, enquanto a dose infecciosa é a faísca que acende esse fogo”.1[Internet] newscientist.com. Acesse o link
E qual é o significado do anterior no contexto do Covid 19?
Ocorre que, se comparada com a de seus primos na família dos coronavírus, SARS e MERS, a dose infecciosa do Covid 19 é muito baixa. Segundo pesquisadores ingleses, bastam algumas centenas ou mil partículas do vírus para infectar a maioria das espécies animais e isso explica a velocidade com que a doença está se espalhando.
“Os vírus não são venenos, dentro da célula são autorreplicantes. Isso significa que uma infecção pode começar com apenas um pequeno número de partículas de vírus (a ‘dose’). O número mínimo real varia entre vírus diferentes e ainda não sabemos o que é essa ‘dose infecciosa mínima’ para o Covid 19, mas podemos presumir que seja em torno de cem partículas de vírus.”
Conclusão: em geral, infectar-se e infectar outros não depende apenas da carga viral da pessoa, mas também da dose infecciosa que lhe é característica – entre outras coisas. E note que o novo coronavírus em particular ativa rapidamente o potencial infeccioso da carga viral de uma pessoa porque ele precisa de um número muito pequeno de partículas do vírus para efetivar a infecção.
Conclusão da conclusão:
A noção de que os trabalhadores da saúde agindo na linha de frente em hospitais ou membros de suas famílias ficam mais doentes e têm maior condição de transmitir uma doença viral que a população em geral, por tenderem a portar uma “carga viral” mais alta, não é correta. De cara, porque aquilo também depende da dose infecciosa de cada qual – e sabe-se-lá-de quantas outras coisas ainda não descobertas. Enfim, a relação entre infecção e gravidade da Covid 19 é bem menos óbvia do que parece.