Você já ouviu de falar de alguém que tenha “positivado” no teste RT-PCR e depois de uns dias, ao retestar, aparecer “negativado”? O vírus sumiu? Pode ser. Ou essa pessoa nunca esteve contaminada? Ocorre que também pode ser.
O teste RT-PCR, tido como o “padrão ouro” dentre os testes de diagnóstico de infecções virais é o melhor do lote, mas não é infalível, e isso deveria ser levado em conta pelo número crescente dos que veem num resultado positivo, uma forma 100% segura de confirmar o resultado obtido num teste sorológico ou de antígeno; ou um passaporte para viajar, visitar, socializar, “aglomerar”… sem sentimento de culpa.
“O pânico causa visão bitolada. A aceitação calma do perigo permite-nos avaliar mais facilmente a situação e ver as opções.”
Segundo o Dr.Michael Osterhalm, talvez o mais influente dos epidemiologistas do mundo e quem em fevereiro previu que a passagem do novo coronavírus pelos EUA seria horrorosa, o teste RT-PCR tem uma taxa de falsos positivos de 20%.1[Internet] nytimes.com. Acesse o link2[Internet] healio.com. Acesse o link
Ao menos três razões explicam essa exuberância de resultados – quando se supõe que a carga infecciosa detectada signifique doença (Covid-19)… e não é nada isso.
A primeira é tecnológica. O RT-PCR usa uma enzima chamada transcriptase reversa para transformar um pedaço específico de RNA do vírus em um pedaço correspondente de DNA. Mas ele é insuficiente para detectar o vírus. É como se a impressão digital de um assassino fosse encontrada no local do crime, porém, difusa o suficiente para evitar a sua identificação de bate pronto. O teste então amplifica o DNA exponencialmente, dobrando o número de moléculas repetidas vezes. Cada amplificação envolve um ciclo de atividades exigidas pelo processo. Até quando amplificar? Até quando repetir esse ciclo?
Resposta: Até que um sinal fluorescente anexado às cópias do DNA se acende, indicando a detecção do vírus. Esse sinal funciona como um indicador de positividade, ou seja, de que o vírus está presente no organismo.
Ocorre que tudo isso acontece em várias etapas realizadas em equipamentos diferentes e sofisticados, que requerem controles muito específicos e delicados. Ou seja, é um processo tecnologicamente complicado, tanto em software quanto em hardware. Por isso, até hoje o RT-PCR demora mais do que os outros tipos de teste de diagnóstico – o teste molecular (PCR), do grupo farmacêutico Roche, fornece resultados em três horas e meia – e se alguém por aí estiver prometendo diferente, convém ligar para… ah, desculpe, esqueci que provavelmente de nada adianta ligar para quem quer que seja. Leve isso em conta ao continuar lendo.
A segunda razão para o RT-PCR “positivar” demais é operacional. Quanto mais inteligente e sofisticado o teste, mais garantida deve ser a disponibilidade de materiais, suprimentos, mão de obra qualificada e capacidade de instrumentos para ele funcionar sem falhas.
“Se você não tiver tudo pronto – a capacidade do material, capacidade do instrumento, disponibilidade de mão de obra qualificada, disponibilidade de uso de instrumentos funcionando perfeitamente, relatório de resultados… – o teste é desperdiçado.”
A terceira razão tem a ver com o teste RT-PCR em si. Para começar, ele foi projetado para pesquisa epidemiológica e não como recurso antiviral. Quanto a sua tendência a produzir resultados “falsos negativos” ou “falsos positivos”, ela depende de dois fatores:
- a sua sensibilidade em relação ao vírus, que varia com o tempo de incubação; e
- o número de vezes que a amostra de DNA é amplificada para detectar o vírus, o chamado Limiar de Ciclo (Cycle Treshold)
O timing na aplicação do RT-PCR
O vírus deve estar em um determinado nível para ser detectado, o qual varia com o tempo.
A probabilidade de um resultado falso-negativo com a reação em cadeia da polimerase da transcriptase reversa (RT-PCR) é menor durante os primeiros dias após o início dos sintomas, de acordo com uma pesquisa publicada no Annals of Internal Medicine. A análise incluiu dados de sete estudos que avaliaram o desempenho do RT-PCR. Os resultados mostraram que durante os 4 dias de infecção antes do tempo típico de início dos sintomas (dia 5), a probabilidade de um resultado falso-negativo em uma pessoa infectada diminui de 100% no primeiro dia de infecção para 67% no quarto dia de infecção. A taxa diminuiu ainda mais para 38% no dia 5 – que normalmente é o dia do início dos sintomas, de acordo com os pesquisadores – e 20% no dia 8. Em seguida, aumentou de 21% no dia 9 para 66% no dia 21. Para dados mais específicos, clique aqui .
Em suma, para detectar se a pessoa está infectada no momento do teste, o RT-PCR deve ser realizado após o quarto dia de sintomas. No quinto dia, por exemplo, não se consegue além de 80% de precisão. Depois do oitavo dia, esqueça, todos os resultados – positivos ou não – são ruins, e não há vírus suficiente para ser infeccioso.
O Limiar do Ciclo
Lembremos do processo de amplificação exponencial do DNA do vírus que eventualmente resultava num sinal fluorescente denunciando “positividade”, antes mencionado: o chamado Limiar do Ciclo.3[Internet] fleury.com.br. Acesse o link
Este é o número de ciclos de amplificação necessários para o sinal fluorescente cruzar um certo limite. Isso permite que amostras muito pequenas de RNA sejam amplificadas e detectadas.
Agora, atenção! Nem todo mundo gosta de detalhes metodológicos. No Quadro seguinte eu descrevo o Limiar do Ciclo e a sua interpretação para fins de decretar a positividade de um vírus no organismo, se houver. Em seguida, comento a celeuma que há em torno disso e suas consequências práticas. Pule o Quadro e vá direto a esse comentário, se quiser.
O “Limiar do Ciclo” (Ct) é o número de ciclos de amplificação em um determinado teste de diagnóstico de presença viral – no caso, o teste RT-PCR.
Em um ensaio de PCR em tempo real, uma reação positiva é detectada pelo acúmulo de um sinal fluorescente. O Ct (limiar de ciclo) é definido como o número de ciclos de amplificação necessários para o sinal fluorescente cruzar um certo limite. Os níveis de Ct são inversamente proporcionais à quantidade de alvo ácido nucleico na amostra (ou seja, quanto menor o nível de Ct, maior a quantidade de ácido nucleico alvo na amostra). Os ensaios em tempo real WVDL passam por 40 ciclos de amplificação.
- Cts <29 são fortes reações positivas indicativas de ácido nucleico alvo abundante na amostra
- Cts de 30-37 são reações positivas indicativas de quantidades moderadas de ácido nucleico alvo
- Cts de 38-40 são reações fracas indicativas de quantidades mínimas de ácido nucleico alvo que poderiam representam um estado de infecção ou contaminação ambiental.
A curva azul corresponde a uma amostra de DNA obtida de mucosa retirada do nariz com um cotonete.
A linha vermelha é a do Limiar do Ciclo
O Ponto A indica o Limiar do Ciclo perfeito (o valor Ct, no gráfico): o número de ciclos de amplificação do DNA do vírus que o torna 100% detectável (ex.: 40).
Explico:
Limiares de ciclo, lembremos, são os momentos em que um ciclo de amplificação deve ser repetido para obter um resultado positivo. Quanto maior for a concentração viral, menor o número de ciclos de amplificação necessários. Noutras palavras, nesse ponto o vírus é descoberto e continuar amplificando vai trazer material genético que, se medido, irá desvirtuar os resultados anteriores (que estavam certos).
Obviamente, um certo número de ciclos de amplificação é o ideal. No gráfico, o ponto A indica a fluorescência indicando a presença de infecciosidade ser denunciada por 40 amplificações.
Note que à direita da linha vertical verde, que representa o Limiar do Ciclo, a curva azul cresce exponencialmente na medida que a fluorescência (eixo vertical) aumenta graças ao número de amplificações cada vez maior (eixo horizontal).
A leitura é a seguinte:
1) no ponto A temos número de amplificações do DNA que melhor capacita o teste RT-PCR para detectar o vírus;
2) à esquerda do ponto A, o Limiar do Ciclo é insuficiente, pouco material genético do vírus é coletado, e isso facilita a geração de “falsos negativos”, e
3) à direita do ponto A, o material genético coletado é demasiado e a probabilidade de apenas ser lixo viral aumenta, agora propiciando “falsos positivos”.
Na fase exponencial da curva azul, o teste RT-PCR coleta apenas “detritos virais” – material genético sem valor infeccioso.
O problema é que há pouco acordo entre as agências sanitárias, os laboratórios de todo mundo e até os cientistas quanto ao Ct ideal (o Ponto A no gráfico) ou seja, o número de ciclos de amplificação ideal. A escolha de um Ct de 39 por parte do Laboratório X versus a escolha de um Ct de 43 por parte do Laboratório Y, conduz a interpretações diferentes, eventualmente equivocadas do teste RT-PCR, como é o caso, aliás, dos “falsos negativos” e principalmente dos “falsos positivos”.
A última edição do Journal of Clinical Microbiology traz um artigo de pesquisadores de um laboratório novaiorquino que compararam a performance de dois testes de diagnóstico da Covid-19 baseadas na tecnologia RT-PCR em tempo real: o Abbott ID NOW COVID-19 lançado recentemente, que é capaz de produzir resultados positivos em apenas 5 minutos, e o Cepheid Xpert Xpress SARS-CoV-2, usando swabs nasofaríngeos transportados em meio de transporte viral para Cefeida e swabs nasais secos para Abbott ID NOW.4[Internet] jcm.asm.org. Acesse o link
“O Abbott ID NOW COVID-19 teve resultados negativos em um terço das amostras com teste positivo pelo Cepheid Xpert Xpress ao usar swabs nasofaríngeos em meio de transporte viral e 45% ao usar swabs nasais secos.”5[Internet] biorxiv.org. Acesse o link
Ou seja, se tomarmos o resultado do teste Cepheid como 100% certo – apenas uma hipótese, alerto – de 100 pessoas que tiverem feito o teste da Abbot e apontadas como positivas, 33 teriam ficado sem dormir, entrado em quarentena, perdido o emprego, parado de fazer sexo etc… completamente em vão. Elas não carregavam o vírus.
Qual é a escolha certa do número de ciclos de amplificação do DNA do vírus no laboratório? Não se sabe. E depois de ler o relato acima você vai me dizer que NÃO lhe interessa? Enquanto o FDA americano, por exemplo, recomenda 40 amplificações, virologistas respeitáveis dizem que um Ct de 30 ou mesmo 35 é o máximo aceitável para ter resultados confiáveis. Inversamente, laboratórios pelo mundo afora estão praticando de 42 a 45. Este último é o caso do teste Cepheida, que se gaba de entregar resultados em 45 minutos.6[Internet] cepheid.com. Acesse o link
Isso acenaria com mais infecções virais do que as realmente existentes. E consequentemente com quarentenas inúteis, iniciativas de negócios ou de estudo e pesquisa canceladas, empresas fechadas e empregos ceifados. Por nada.
Na fase exponencial da curva azul, no gráfico, diz Haselman, o teste RT-PCR coleta apenas “detritos virais”, que podem ser detectados semanas ou até meses depois de uma infecção viral. Isso explica os “falsos positivos”.
A prestigiosa revista científica The Lancet alertou:
“Embora o uso de métodos de PCR sensíveis ofereça valor do ponto de vista diagnóstico, é necessário cautela ao aplicar esses dados para avaliar a duração da eliminação viral e o potencial de infecção, porque a PCR não distingue entre vírus infeccioso e ácido nucleico não infeccioso”.7[Internet] thelancet.com. Acesse o link
O que podemos concluir?
Nem tudo o que brilha é ouro em relação ao teste RT-PCR. Se executado na base de 40 ciclos, ele acaba amplificando material genético não infeccioso, e gerando um marcador para a doença real que é fictício.
A relação do teste RT-PCR com a infecciosidade não é clara e depende de variáveis estruturais (ex.: dependência de um Limiar do Ciclo ainda incerto) e humanas (ex.: quando fazer o teste; operação do equipamento). Nada surpreendente, uma vez que a técnica PCR foi desenvolvida para fornecer material de pesquisa, e não para testar gente – e muito menos para legitimar decisões sobre, por exemplo, se visitar a vovozinha, viajar nas Festas de fim de ano, ou ir à praia.
Enfim, a detecção de um vírus por PCR é útil, desde que suas limitações sejam compreendidas. Ele detecta quantidades mínimas de RNA, o que é muito bom, porém é preciso ter cuidado com os resultados, pois muitas vezes não detecta vírus infeccioso (“falso negativo”), ou o detecta quando o seu potencial infeccioso não existe mais (“falso positivo”).
Moral da história? Você já sabe. Quer se precaver antes de viajar? Ou antes de sair para jantar com amigos? Pare de pensar em testes. Não viaje. Não saia. Ou, se quiser mesmo arriscar, anote aí: “Use máscara, mantenha distância social… etcétera”. Sorry about that. Bye.