Nessa semana, o terceiro e último post da série sobre a baixa taxa de adesão ao tratamento dos pacientes com dor crônica. O seu propósito é salientar o quanto a escassa compreensão do que é a Dor Crônica, faz os pacientes abandonarem o tratamento médico prescrito.
Destaques
- A dor crônica é uma dor de alta complexidade
- Expectativas equivocadas
- Crença na infalibilidade da medicina
A dor crônica é uma dor de alta complexidade
A maioria das pessoas com dor crônica não conhece sua causa e não consegue encontrar uma cura. Em boa parte, isso se deve à natureza extremamente complexa dessa dor. A dor crônica geralmente carece de ferida exposta e é recorrente, nem sempre fica num mesmo local do corpo. Além disso, a sua gênese biológica ainda é desconhecida. Sabe-se, sim, que ela pode ser fomentada por fatores afetivos e/ou emocionais, além de estar associada a transtornos mentais como ansiedade e depressão. O que, na prática, em vez de ajudar, complica seu diagnóstico.
O paciente com dor e sua interação com o ambiente terapêutico constituem um sistema complexo, com diversos agentes relativamente independentes, tais como as pessoas do médico e do paciente, a intensidade da dor, o tipo de tratamento e as interações que exige (farmácia, fisioterapia, dieta, meditação etc.), apresentando alta variabilidade em termos de sinergia e desempenho.1[Internet] Pubmed.ncbi.nlm.nih.gov. Acesse o link.2[Internet] Scielo.org.co. Acesse o link.
Em síntese: a dor crônica é “…uma experiência sensorial e emocional complexa que varia amplamente entre as pessoas, dependendo do contexto e significado da dor e do estado psicológico da pessoa”.3[Internet] Ncbi.nlm.nih.gov. Acesse o link.
Leitura recomendada: Dor Crônica: Onde o Corpo Encontra o Cérebro.4[Internet] Dorcronica.blog.br. Acesse o link.
Expectativas equivocadas
Os pacientes esperam retornar ao que percebem como normal e ter informações claras e relevantes sobre sua condição de saúde, um diagnóstico preciso e um tratamento eficaz. Mas, a complexidade dessa dor e o fato de médicos de clínica geral e especialistas considerarem a dor crônica muito difícil de controlar significa que isso geralmente não é possível.5[Internet] Pubmed.ncbi.nlm.nih.gov. Acesse o link.
Na Nova Zelândia (em 2015), por exemplo, uma em cada seis pessoas relata dor crônica, mas a literatura indica que apenas uma redução da dor de 30% é normalmente alcançada em cerca de metade dos pacientes tratados. A maioria dos que esperam uma cura de sua dor, ou mesmo uma redução substancial da dor, fica desapontada.
“Existe uma mentalidade que diz que se eles puderem tomar uma pílula, isso curará tudo”.
Ora, é importante alinhar as expectativas do paciente com essa realidade. E a quem cabe fazer isso?6[Internet] Pubmed.ncbi.nlm.nih.gov. Acesse o link.
O descompasso entre as expectativas do paciente e os resultados do tratamento afeta a relação entre profissionais de saúde e pacientes, seja porque os primeiros não cedem a pressão dos segundos por prescrições de remédios que acalmem a dor, ou porque cedem, prescrevendo medicamentos ineficazes, ou eventualmente nocivos.
A causa do problema é dupla: pacientes que ignoram a eficácia limitada dos analgésicos para tratar a dor persistente, e profissionais da saúde que pouco fazem por atenuar a desinformação.7[Internet] Pubmed.ncbi.nlm.nih.gov. Acesse o link.
Crença na infalibilidade da medicina
O fato de a medicina ser uma ciência, não significa que seus ditados funcionam igualmente bem para todo mundo. Das vacinas anti-Covid-19 aprovadas para aplicação coletiva pelo FDA ou pela ANVISA, por exemplo, nenhuma mostrou-se perfeita em termos de funcionamento, segurança e efeitos colaterais nas (3) fases de desenvolvimento. No entanto, foram aprovadas.
Com os medicamentos ocorre algo parecido. Quando o FDA ou a ANVISA autoriza a comercialização de um analgésico ou antidepressivo, significa duas coisas: o medicamento é seguro e eficaz para o uso pretendido; e seus benefícios superam seus riscos (quando usado de acordo com sua rotulagem aprovada). Note, porém, que “seguro” e “eficaz” são aproximações de 100%, não são 100%. E isso de que “os benefícios superem os riscos”, é outra maneira de dizer que, sim, riscos existem. Ou seja, sempre que você usa um medicamento há uma probabilidade de que a sua efetividade (em você, especificamente) varie entre 0 e 100%.
Várias revisões de artigos Cochrane, por exemplo, mostram taxas de sucesso do tratamento farmacológico acima de 50% para apenas quatro drogas na dor aguda pós-operatória (paracetamol 500 mg + ibuprofeno 200 mg; paracetamol 1000 mg + oxicodona 10 mg; etoricoxibe 120 mg; ibuprofeno 400 mg + codeína 26-60 mg) e uma em enxaqueca (zolmitriptano 10 mg). Para todas as outras drogas e em todas as outras condições, menos da metade dos pacientes alcançou uma redução de pelo menos 50% na intensidade da dor.8[PDF] Purehost.bath.ac.uk. Acesse o link.9[PDF] Bmj.com. Acesse o link.
O artigo “Expect analgesic failure: pursue analgesic success”, publicado há uma década no prestigiado British Medical Journal, aponta que “A maioria das drogas analgésicas funcionam bem, porém em um número pequeno de pessoas”:
- Na dor aguda pós-operatória, a taxa de falha foi de 66% com paracetamol 1.000 mg e 53% com ibuprofeno 400 mg e diclofenaco 50 mg.
- Na enxaqueca, as taxas de falha foram de 55-71% para a maioria das intervenções.
- As taxas de falha para anti-inflamatórios não esteroides foram de 58-72% na espondilite anquilosante, ≥70% na osteoartrite e ≥80% na lombalgia crônica.
- Para condições neuropáticas, antidepressivos e antiepilépticos tiveram taxas de falha de ≥70% em neuropatia diabética dolorosa e neuralgia pós-herpética e ≥87% na fibromialgia.
- Dados para opioides em dor crônica não oncológica estavam disponíveis apenas para tapentadol e oxicodona em uma análise combinada de osteoartrite e ensaios de dor lombar crônica; tapentadol teve uma taxa de falha de 90% e a oxicodona teve uma taxa de falha de 100%, consistente com o que é observado em outras análises para opioides fortes convencionais.
Como as taxas de sucesso quanto a efetividade dos medicamentos são baixas, o médico precisa testar vários deles no paciente no intuito de otimizar o tratamento, especialmente em condições crônicas complexas. Esse processo de tentativa-e-erro frequentemente demora meses, frustra os pacientes e acaba levando alguns a abandonar o tratamento.