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O modelo biopsicossocial da medicina – uma boa ideia que ficou nisso

O modelo biopsicossocial da medicina – 40 anos depois de ter sido proposto

Há 40 anos, o psiquiatra George L. Engel, numa palestra antológica, traçou o campo do que até hoje se conhece por “modelo biopsicossocial da medicina”. Uma excelente ideia que até hoje não conseguiu decolar, em país nenhum, seja no ensino da medicina ou na prática médica. O mérito do artigo a seguir é o de apresentar vários pontos outrora mencionados por Engel à luz da prática médica atual. Julgue você se as ideias humanitárias que sustentam o modelo biopsicossocial que ele propôs têm ainda chance de se tornar realidade.

“As ideias não se mantêm. Algo deve ser feito sobre elas.”

– Alfred North Whitehead

Há 40 anos, o psiquiatra George L. Engel, numa palestra antológica, traçou o campo do que até hoje se conhece por “modelo biopsicossocial da medicina”. Curiosamente, a sua intenção não era essa, e sim a de fundamentar uma rejeição à tendência da psiquiatria – na época em baixa nos EUA – emular o enfoque da medicina clássica. Se esta última não cura as pessoas, e nem sequer as trata com humanidade, por que a psiquiatria deveria adotar a mesma rota? questionava Engel. Fora isso, ele pôs o dedo numa ferida que hoje é hemorrágica: a aliança entre interesses comerciais em medicina e reducionismo biomédico.

Este último, lembremos, encara a doença como uma entidade separada, uma espécie de desvio das normas fisiológicas, sendo o corpo pensado como um conjunto de sistemas relacionados, mas relativamente independentes. Daí o “reducionismo”.

Engel já percebia a vigorosa exportação do espírito animal empresarial ao campo da ciência médica e medicina clínica, forçando a concentração de investimentos em fatores etiológicos e agentes terapêuticos únicos no tratamento de doenças específicas. No Século XX, a medicina experimentou avanços extraordinários, mas o movimento também alimentou a prevalência de ensaios randomizados geralmente realizados por e para os benefícios da indústria biofarmacêutica, bem como a especialização e hierarquização da prática clínica. Deixou assim de resolver questões clínicas básicas, como tratar os pacientes como pessoas e não como números ou fichas médicas. Tudo isso, Engel denunciou na sua palestra.

O que parecia ser um ponto de inflexão na prática médica, a adoção do modelo biopsicossocial pelas faculdades de medicina e afins, e principalmente pela prática clínica, porém, escafedeu-se. Existem expressões disso aqui e acolá, mas o seu impacto é minúsculo, e sua influência nenhuma, diante do tamanho gigantesco da necessidade de, paralelamente a exames, protocolos, e consultas médicas fugazes, tratar o paciente como um ser único.

Na minha opinião, enquanto paciente atento é que falta o ator principal nessa peça melancólica: o médico clínico.

Faltam a ele(a):

  • o conhecimento (a dor não é ensinada nas faculdades de medicina),
  • a disposição (em geral, a medicina centrada no paciente é privilégio de quem pode pagar a conta de um hospital de ponta) e
  • o tempo (a duração média das consultas varia muito, de 48 segundos em Bangladesh a 22,5 min na Suécia; 18 países representando cerca de 50% da população global gastam 5 minutos ou menos com seus médicos de atenção primária. No Brasil seriam 7,5 minutos.

A palestra de Engel pode ser acessada aqui. Outros dois posts também se concentram nele e na sua iniciativa: O Modelo Biopsicossocial da Medicina numa vida sem tempo e Bom dia, flor do dia!

O mérito do artigo a seguir é o de apresentar vários pontos outrora mencionados por Engel à luz da prática médica atual. Julgue você se as ideias humanitárias que sustentam o modelo biopsicossocial da medicina que ele propôs têm ainda chance de se tornar realidade.

Autores: Fava GA e Sonino N.. Publicado por: Psychother Psychosom 2017; 86: 257-259

Da lição de George Engel ao conhecimento atual: o modelo biopsicossocial 40 anos depois

Quarenta anos atrás, George L. Engel (1913-1999), um estudioso proeminente no movimento psicossomático do século passado, publicou “A necessidade de um novo modelo médico: um desafio para a biomedicina” na Science1. O artigo teve um impacto considerável na comunidade científica e atraiu mais de 3.500 citações na Web of Science. Curiosamente, o fluxo de citações não pareceu desaparecer ao longo dos anos e, de fato, aumentou na última década. Uma possível razão é o fato de Engel ter identificado os primeiros sinais das inadequações científicas, clínicas e intelectuais do modelo biomédico tradicional que se tornaram progressivamente mais pronunciados.

Sua principal crítica dizia respeito ao reducionismo, à tendência de ver fenômenos clínicos complexos como derivados de uma única causa primária (por exemplo, genética), em vez de usar um quadro de referência multifatorial. Engel apontou para os perigos da aliança entre interesses comerciais em medicina e reducionismo biomédico.2 De fato, é provável que o interesse corporativo pela ciência médica destaque a importância de fatores etiológicos únicos e agentes terapêuticos no tratamento da doença. Ele antecipou o cenário médico atual dominado por grupos de interesses especiais: ensaios randomizados influentes são geralmente realizados por e para os benefícios da indústria, as diretrizes atendem a interesses pessoais, os fundos de pesquisa nacionais e federais não conseguem resolver questões clínicas básicas.3 Um importante impulso ao reducionismo foi determinado pelo crescimento da medicina baseada em evidências que provavelmente se concentrará em fatores únicos, deixando de dar peso adequado às variações clínicas e a todos os componentes terapêuticos456. A medicina personalizada/de precisão, conhecida como conhecimento baseado em genômica, prometeu abordar cada paciente como o indivíduo biológico que ele é789. No entanto, as aplicações práticas ainda têm um longo caminho a percorrer1011 e a negligência das características psicológicas e sociais pode realmente levar a um medicamento “despersonalizado”12.

Uma segunda grande crítica ao modelo médico tradicional abordou a falta de integração dos avanços nas ciências comportamentais e sociais na medicina clínica13, em um cenário em que quase todos os gastos com saúde são direcionados a intervenções de orientação biomédica.

Nas últimas quatro décadas, um grande corpo de pesquisa documentou o seguinte:

  1. Eventos estressantes da vida e desafios ambientais repetidos ou crônicos desempenham um papel na modulação da vulnerabilidade individual à doença1415.
  2. A tendência de experimentar e comunicar sofrimento psíquico na forma de sintomas físicos e procurar ajuda médica para eles é um fenômeno clínico generalizado que pode envolver de 30 a 40% dos pacientes médicos e aumenta a utilização e os custos médicos16.
  3. Os distúrbios afetivos, como depressão e ansiedade, bem como o comportamento da doença (as maneiras pelas quais os indivíduos experimentam, percebem, avaliam e respondem ao seu próprio estado de saúde), podem afetar o curso, a resposta terapêutica e o resultado de qualquer episódio de doença17.
  4. Verificou-se que o bem-estar psicológico e a resiliência desempenham um papel protetor no equilíbrio dinâmico entre saúde e doença181920. Assim, a necessidade de incluir consideração da função na vida cotidiana, produtividade, desempenho de papéis sociais, capacidade intelectual, estabilidade emocional e bem-estar, emergiu como uma parte crucial da investigação clínica e do atendimento ao paciente21.


Outra crítica importante foi o conceito tradicional de doença, que tende a se restringir ao que pode ser entendido ou reconhecido pelo médico22. Engel ressaltou o paradoxo de os pacientes se sentirem doentes e com certeza de que estão bem devido à falta de resultados laboratoriais anormais23. Hoje, o espectro alterado das condições de saúde (por exemplo, multimorbidade, cronicidade) aponta para as inadequações de uma assistência médica que se concentra principalmente no diagnóstico e tratamento de cada doença separadamente24. O objetivo do tratamento deve ser a identificação de todos os fatores biológicos e não biológicos modificáveis ​​e a consecução de objetivos individuais25. Consequentemente, as fronteiras tradicionais entre as especialidades médicas, baseadas principalmente em sistemas orgânicos (por exemplo, cardiologia, gastroenterologia) parecem ser cada vez mais inadequadas para lidar com sintomas e problemas que exigem uma abordagem integrada26.

Engel achava que a transição do modelo biomédico restrito para o modelo biopsicossocial era o maior desafio para a medicina na virada do século27. Seu modelo permite que a doença seja vista como resultado de mecanismos de interação nos níveis celular, tecidual, organísmico, interpessoal e ambiental, como componentes essenciais de todo o sistema28. Ele enfatizou particularmente a capacidade do médico de influenciar e modificar o comportamento do paciente em direções saudáveis29. Melhorias nos sintomas de um paciente que podem ser atribuídas a encontros terapêuticos frutíferos são fenômenos que dependem de mecanismos neurobiológicos complexos e envolvem neurotransmissores e áreas específicas do cérebro3031. A recente declaração de posição da American Diabetes Association sobre os cuidados psicossociais para pessoas com diabetes32 está alinhada com essa perspectiva.

Como observou Richardson33, a prática da medicina baseada em evidências deve envolver o cuidado de pessoas inteiras e isso torna a abordagem de Engel mais oportuna do que nunca. De fato, em sua definição original, a medicina baseada em evidências tratava de “integrar o conhecimento clínico individual às melhores evidências externas”34. O problema é que “evidências externas” são manipuladas e mal utilizadas para apoiar conflitos de interesses financeiros35. O resultado final é que ele leva o médico prescritor a uma consideração superestimada dos benefícios potenciais, prestando pouca atenção à probabilidade de resposta e às vulnerabilidades potenciais em relação aos efeitos adversos do tratamento36. O clínico que segue as diretrizes está convencido de aplicar as melhores evidências e não sabe que é simplesmente orientado a enxergar os problemas de uma certa maneira e a tratar o paciente médio em vez das necessidades individuais, degradando a prática clínica37. Não existe uma solução “média” simples para a maioria dos problemas médicos. A questão é como colocar as evidências disponíveis no contexto de ativos e passivos únicos individuais.

Como Horwitz et al.38 observou: “o que é necessário para complementar o poder da genômica é uma ênfase nos atributos pessoais dos pacientes e seus ambientes e incorporar esses recursos em uma abordagem enriquecida da medicina personalizada” (p. 1156). A medicina é basicamente sobre relacionamentos e cura. As ferramentas tecnológicas para o gerenciamento de doenças3940 não diminuem a necessidade de ser científico no domínio humano. Espera-se que os novos modelos e descobertas na ciência reconheçam e incorporem totalmente o construto biopsicossocial de Engel. Isso também implicaria uma melhor comunicação e interação entre evidências psicossomáticas e avanços biomédicos.

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