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O estigma do paciente com dor crônica

O estigma do paciente com dor crônica

Estudos atestam que pacientes com doenças crônicas se consideram estigmatizados quando se sentem estereotipados como ‘diferentes’, excluídos da tomada de decisão, discriminados socialmente, ‘tratados injustamente’ e impotentes ao interagir com outros dentro dos sistemas de saúde e odontológico. O estigma é um costume social que muitos pensam estar circunscrito ao sistema de castas indiano, quando de fato existe entre médicos e enfermeiros, entre enfermeiros e faxineiros e entre todos estes e pacientes com psoríase, em consultórios médicos e hospitais de alta patente. Como quase toda ação humana desprezível, o exercício do estigma é velado, mas isso não significa que passe despercebido. Esse post dá uma pálida ideia de quanto a prática está infiltrada na prestação de serviços de saúde. E do muito que isso deve prejudicar o bem-estar e a recuperação dos pacientes com doenças ou dores crônicas.

“Qualquer funcionário de uma unidade de saúde que tenha contato com o cliente pode estigmatizar.”

Portadores de doenças e/ou dores crônicas variam quanto a idade, vigência e severidade da dor, níveis socioeconômicos e culturais, tipos de tratamento etc. Mesma coisa com relação às queixas – dor persistente ou recorrente, problemas do sono, constipação… – alguns as têm, outros não. Exceto a que se refere ao estigma. Isso parece afetar todo mundo – ou quase.

Veja a seguir, dois exemplos escolhidos a esmo, dentre as várias mensagens que o blog recebe todo dia.

Reprodução de texto literal, nome fictício.

Júlia

“Fui Diagnosticada à 10 anos,mas sofro desde os 30 anos é horrível estou com 54 anos dói tudo Dia e noite ,trabalho como Doméstica,então aprendi a conviver com a dor e à chorar sozinha e quietinha muitas das vezes por ser incompreendida com minha doença,fico impressionada com relatos de pessoas,q dizem ter toda assistência médica para se tratar e ainda assim sofrem de muita Dor!Eu queria ter condições de poder me tratar adequadamente,mas conto só com os antiflamatorios.Por conta doença adquiri outros males,uma delas a perda da memória,prático academia “musculação”,outro dia o Prof.da minha academia me chamou a atenção dizendo q presiso me esforçar para lembrar nome dos aparelhos e exercícios q devo fazer,posso ter feito no dia anterior os mesmos exercícios,mas dia seguinte já não me lembro de nada🥺respondi a ele q à muitos anos sou assim ,e q queria muito chegar todo o dia na minha academia,e lembrar os nomes exercícios aparelhos como os jovens,só q não consigo.Chorei pq me senti burra,ele conversou dizendo q não quis me causar esse tipo de sentimento,e no final dos exercícios veio se desculpar!As pessoas não deveriam julgar,sem antes saber as nossas limitações me esforço muito só Deus sabe o quanto.”

Beatriz

“Sonho com o dia em que médicos responsáveis entenderam as nossas dores e nos darão  melhores qualidade de vida, além de remédios que sanem as nossas dores, e não remédios caros que só enriquecem a indústria farmacêutica, que as nossas dores são reais e incapacitantes tanto físico como emocional e que merecemos respeito dignidade para uma vida melhor e sem dores…🙏”

Bem, por causa de inúmeros relatos como esses eu me interessei no post What types of Stigma surround Chronic Pain”, publicado no site PainScale, que opera uma plataforma digital patrocinada pela Boston Scientific Corporation, um dos maiores fabricantes de dispositivos médicos usados ​​em especialidades médicas intervencionistas (ex.: radiologia, neuromodulação, eletrofisiologia, endoscopia etc.), no mundo.

“Indivíduos com dor crônica geralmente experimentam estigma, o que pode impactar negativamente sua saúde física e mental. O estigma é definido como um conjunto de crenças negativas sobre outras pessoas com uma característica ou traço específico, incluindo, mas não se limitando a, uma condição de saúde, deficiência, religião ou preferência sexual.”1

Assim começa o post. Em princípio, tudo bem porque “condição de saúde” tem a ver com dor crônica, seja associada a doenças crônicas, ou considerada uma doença crônica por direito próprio (ex.: fibromialgia, cefaleia). E também, por reconhecer que a estigmatização pode agravá-la.

A coisa desanda, no entanto, quando o estigma é definido pela posse de crenças negativas. Eis uma visão muito estreita, míope, que praticamente inocenta quem projeta o estigma. Então, se um fisioterapeuta se mostra incomodado diante de um paciente que não consegue se movimentar como requerido – esse episódio aconteceu comigo – não há nada a objetar. Afinal, o profissional acredita que o portador de fibromialgia “é difícil”, “reclamão” e “não quer se mexer”. Afinal, possuir crenças, seja elas quais forem, é um direito e não prejudica ninguém.

E o direito do paciente? O direito de ser atendido clinicamente e, antes de mais nada, respeitado humanamente? Esse direito é violentado quando o outro projeta para cima dele, ou de espectadores, as tais crenças.

“O estigma é um poderoso processo social que se caracteriza por rotulagem, estereótipo e separação, levando à perda de status e discriminação, tudo ocorrendo no contexto do poder.”2

Ora, essa definição é mais realista. E cabe bem na realidade do mundo da prestação de serviços da saúde, onde o hábito de estigmatizar os usuários é amplamente difundido.3

Desvalorizar relatos, queixas e apreensões das pacientes com dor crônica – comprovado por mim numa pesquisa com mais de mil mulheres em 2020 – e desacreditar suas integridades enquanto pessoas, é muito mais profundo, e devastador que apenas “ter crenças negativas”. Crenças você tem e guarda para si, reações você projeta, expressa… E essas reações, se estigmatizantes, mesmo que sutis, não podem passar batidas, nem ser inocentadas.

“Dentro das unidades de saúde, os fatores comuns podem incluir atitudes negativas, medo, crenças, falta de conscientização sobre a condição em si e o estigma, incapacidade de gerenciar clinicamente a condição e procedimentos ou práticas institucionalizadas.”456

“Os profissionais de saúde podem temer a infecção, os comportamentos do grupo estigmatizado (como o uso de drogas ou ações erráticas ou imprevisíveis) ou a mortalidade associada à condição.”789

Mas banquemos os inocentes mais um pouco. Suponhamos que não passa pela cabeça dos que projetam estigma estar degradando quem quer que seja. E suponhamos, também, que eles são sinceros, que de fato não se consideram atores nessa peça.

“Os profissionais de saúde podem não estar cientes de como o estigma se manifesta e afeta as pessoas e, portanto, podem não estar cientes dos efeitos estigmatizantes de suas ações ou de como as políticas ou estruturas das unidades de saúde afetam os clientes.”

Então, iluminemo-os.

De cara, esclareço que eu vou sair do típico enquadramento do estigma, restrito aos portadores de HIV, tuberculose (TB), doenças mentais, abuso de substâncias, diabetes, hanseníase e câncer. Epilepsia e obesidade/excesso de peso também caem nesse grupo. E mesmo assim, a limitação não faz jus a capilaridade do estigma evidenciado no âmbito de quem presta serviços de saúde e quem os recebe. Como veremos a seguir, a discriminação social, velada ou não, atinge o meliante com psoríase, a mulher com dor crônica, o paciente que diz ter fibromialgia, o idoso com dificuldade para explicar onde e quanto dói…

Os Tipos de Estigma relacionados a Serviços à Saúde

O estigma pode ser categorizado em cinco tipos principais: estigma antecipado, estigma público, estigma velado, estigma sistêmico e autoestigma. Todos eles podem afetar indivíduos com dor crônica.

Estigma antecipado

Com esse tipo de estigma, o indivíduo que faz uso de opioides ou é portador de uma doença venérea ou de AIDS, fica ciente das percepções negativas em torno dessas condições e desenvolve a expectativa de ser rejeitado por causa delas.10

Exemplos:

  • Medo de rejeição de amigos ou familiares que acreditam que todos os indivíduos que tomam opioides são viciados neles.
  • Medo de perder o emprego, ou de não passar no exame médico requerido para obtê-lo.
  • Medo de não ser ouvido(a) ou respeitado(a) ou de ter a intimidade desprotegida ao consultar profissionais de saúde.
  • Apreensão quanto a sua condição clínica se tornar conhecida de terceiros (ex.: a recepcionista da clínica, o superior ou os colegas no trabalho, os filhos em casa…).
  • Medo de nunca conseguir prosperar num relacionamento sentimental.

Estigma público

O estigma público é um conjunto de crenças negativas ou preconceitos da sociedade que levam as pessoas a discriminar indivíduos com certas características, traços ou condições.

Exemplos de estigma público em torno da dor crônica:

  • Um médico presumindo que um indivíduo com dor crônica está procurando drogas ou exagerando a gravidade de sua dor.
  • Um fisioterapeuta que reluta em aceitar um paciente com fibromialgia porque “em geral, esse pessoal não quer fazer exercício”.
  • Um empregador que toma uma decisão de contratação ou promoção com base na crença de que os indivíduos com dor crônica não mostram assiduidade no comparecimento ao trabalho, ou são preguiçosos.
  • Um familiar ou pessoa próxima do paciente, que supõe que os indivíduos a quem é prescrito opioides são moralmente fracos ou perigosos.
  • Preconceito grupal em relação a uma pessoa perturbada mentalmente (ex.: ansiedade, esquizofrenia, trauma, depressão), atribuindo-lhe faculdades limitadas ou um estado latente de loucura.

Estigma velado

O estigma velado consiste nos comportamentos que se desenvolvem a partir de um pensamento coletivo não expresso nem confesso, como a discriminação por raça, gênero, classe social etc.

Exemplos de estigma velado relacionado aos opioides:

  • A relutância por parte de médicos ou médicas em aceitar pacientes considerados ‘socialmente inconvenientes” (ex.: falta de higiene pessoal).
  • A exclusão do portador de cefaleia, de uma atividade social ou familiar, sob a alegação velada de a sua presença vir constranger os outros devido à falta de animação ou interesse.
  • Indivíduo a quem lhe são prescritos opioides com clara justificativa médica, que é preterido para uma promoção no emprego por se desconfiar da sua conduta no futuro.

Estigma estrutural ou sistêmico

Quando o estigma público e o estigma velado se expressam em normas culturais, instituições ou leis.

Exemplos de estigma estrutural são:

  • Consultório médico que institui uma política contra a prescrição de narcóticos, potencialmente evitando que os indivíduos recebam analgésicos adequados.
  • Clínica médica que exige que os indivíduos que precisam de analgésicos fortes se submetam a exames de drogas aleatórios ou assinem um “contrato para a dor” que usa linguagem humilhante, transmitindo suspeita e descrença.
  • Médico ou médica que durante a consulta de um paciente idoso que comparece acompanhado, se dirige o tempo todo ao acompanhante mais jovem.
  • Exames de sangue ou raios-X necessários como “prova” de deficiência para receber compensação do Seguro Social ou outros benefícios necessários, embora algumas condições de dor crônica sabidamente não produzam resultados de teste anormais, ou nem sejam diagnosticadas com ajuda de exames.
  • Violência obstétrica afetando mulheres negras (ou até influencers, no Brasil).
  • Descrença quanto a intensidade da dor relatada por mulheres portadoras de dores crônicas (normalmente sem causa visível).

Autoestigma ou e stigma internalizado

Ocorre quando um indivíduo que vivencia o estigma público aceita e adota os valores estigmatizados aplicados a ele. O indivíduo passa a acreditar em que as políticas sistêmicas, e os comportamentos desrespeitosos, indolentes ou discriminatórios por parte de profissionais de saúde; funcionários de hospitais, clínicas, laboratórios e consultórios; empregadores; amigos ou familiares são legítimos, e assim, merecidos e inevitáveis. Assim, ele ou ela acaba por invalidar intimamente a própria dor! O que pode afetar a sua autoestima e a autoavaliação da sua saúde mental, além de diminuir a probabilidade de se buscar o tratamento necessário.

Exemplos de autoestigma em torno da dor crônica:

  • Indivíduo com dor crônica que não procura tratamento porque os profissionais de saúde duvidam da realidade de sua dor.
  • Indivíduo com dor crônica que questiona a validade de sua dor porque amigos e familiares não entendem o impacto que a dor crônica tem na sua vida.
  • Indivíduo com dor crônica que desacredita da sua dor porque ela não apresenta ferida ou qualquer razão para existir.
  • Indivíduo que acaba acreditando em que a dor que sente somente existe na sua imaginação.

Conclusão

O estigma se manifesta de muitas formas, em vários níveis, e – o mais importante – não é inofensivo para a saúde física e mental do estigmatizado. Especialmente na área da prestação de serviços à saúde. EmThe Health Stigma and Discrimination Framework: a global, crosscutting framework to inform research, intervention development, and policy on health-related stigmas”, um bom artigo sobre o tema publicado recentemente numa afiliada da Nature, cientistas de diferentes nacionalidades apontam:

“(Os pacientes) que vivenciam, internalizam, percebem ou antecipam o estigma relacionado à saúde enfrentam uma série de possíveis resultados, como atraso no tratamento, baixa adesão ao tratamento ou intensificação do comportamento de risco, que podem diminuir sua saúde e bem-estar.”11

Além de enfrentar consequências perniciosas para a saúde mental e desestabilizadoras para a autoimagem, eu agregaria.

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