Acredite se quiser, mas o futuro da analgesia pode estar menos na farmácia e mais na poltrona. A mente efetivamente pode vir a ser usada pela pessoa para aliviar suas dores, seja diretamente, ou despertando motivação e autocontrole suficientes para perseguir esse objetivo. Esse post apresenta duas terapias, ainda pouco usadas por médicos e fisioterapeutas no Brasil, que vão nessa direção.
“A má notícia é que você não pode controlar nada além de seus pensamentos. A boa notícia é que, com seus pensamentos, você pode controlar todo o resto.”
Tempos atrás, eu apresentei uma forma de um “paciente crônico” entender a sua dor, e o que ela está lhe causando enquanto pessoa. Um processo de três etapas – o mapa, o método e a técnica – que descrevi em três posts. O método escolhido para exemplificar foi o da reestruturação cognitiva, e a técnica, a de “re-roteirização” (rescripting).
Nesse post eu vou revisitar, mais detalhadamente, esta última. Primeiro, expondo o que a “re-roteirização” é e como funciona. E depois, destacando a “família” tecnológica a que ela pertence: a imaginética (ou imaging).
A “re-roteirização” é o tema de um artigo de duas fisioterapeutas canadenses publicado pela Cambridge University Press: “The Rescripting of Pain Images”. O procedimento cognitivo se inicia com o paciente descrevendo detalhadamente sua imagem mais angustiante recorrente, e prossegue com ele substituindo-a por imagens mais benignas de sua preferência. Isto é conseguido mostrando a ele novas imagens.
A técnica foi testada num grupo de 55 voluntários com dor crônica, com resultados surprendentes.
Após a escolha das imagens angustiantes iniciais, estes experimentaram emoções negativas e um aumento da dor. No entanto, após a “re-roteirização” das imagens, houve reduções substanciais nas emoções negativas e nas avaliações de dor anteriores.
Gráfico 1
Todas as reduções em ansiedade, tristeza, raiva e dor foram estatisticamente significativas e consideradas clinicamente úteis. Fora isso, a metade dos 55 participantes não reportou dor durante a “re-roteirização”. Por outro lado, o grupo de controle não apresentou reduções. E não menos importante, todos os participantes acharam o procedimento fácil de realizar e prazeroso.”
Trata-se, assim, de uma espécie de resgate psicológico, com potencial para induzir o paciente a substituir crenças, pensamentos e hábitos indesejados – do ponto de vista da sua dor crônica – por crenças, pensamentos e hábitos saudáveis. Ou seja, uma experiência de dor pode ser reduzida por uma manipulação relativamente simples de uma variável cognitiva: o conteúdo da imagem.
Qual é a origem da técnica de reestruturação cognitiva chamada de “re-roteirização”?
Ela se apoia em duas terapias de sucesso comprovado no tratamento de dores crônicas.
- Ideologicamente, na tradição da Terapia Cognitiva Comportamental, que visa reformar (substituir, eliminar, contornar) crenças equivocadas ou tóxicas que poderiam estar colaborando com a dor crônica de um paciente.
- E tecnicamente, na Terapia do Espelho ou Mirror Therapy proposta por Ramachandran e Rogers-Ramachandram há mais de vinte anos (1996).
A primeira é arquiconhecida, e a segunda, já postada no blog faz tempo, nem tanto. Por isso, vou comentá-la rapidamente.
Visando treinar o cérebro para tratar pacientes amputados sofrendo de “dor fantasma”, Ramachandram, um neurocientista indiano ligado à Universidade da California, inventou um artefato chamado de “Caixa Espelho”, ou Mirror Box.
O paciente introduz a perna intocada num lado, e a outra, ou o que restou dela, do outro lado. Depois, ele observa o lado ocupado e movimenta a perna que ali está. Para encurtar a história, ao se refletir no espelho a movimentação engana o cérebro, que pensa que a perna inexistente de fato existe, está sadia e pode se mexer. A diminuição da dor vem por consequência.
Em suma, através da retroalimentação visual, o paciente chega a “mover” o membro faltante e a eliminar posições potencialmente dolorosas. A “Caixa Espelho” tem sido usada na reabilitação de hemiparesia (paralisia de um lado do corpo por lesão cerebral).
Ainda não se sabe de teoria que suporte a técnica, mas ela funciona. Em 2010, o neurocientista alemão Martin Diers usou imagens motoras graduadas (Graded Motor Imagery), uma derivada da Terapia do Espelho em pacientes com síndrome de dor regional complexa e dor do membro fantasma. Houve diminuição da dor e melhora na função 6 meses após o tratamento.
Confesso que ao redigir o presente post a minha intenção não foi a de apenas apresentar duas técnicas de mudança cognitivo comportamental – embora ambas tenham utilidade na reabilitação de pessoas com dor e incapacidade e, no entanto, sejam minimamente usadas no Brasil.
O meu propósito foi destacar o quanto as descobertas da neurociência já estão revolucionando as práticas fisioterápicas convencionais. Por trás da “imaginética”, da “re-roteirização”, da Terapia do Espelho, do neurofeedback, da realidade virtual, da Terapia da Neuroimagem… e sabe-se lá de quantas outras terapias semelhantes sendo testadas e validadas pelo mundo a fora, há um conceito revolucionário: o de que a mente efetivamente pode ser usada pelo hospedeiro para aliviar dores, seja diretamente, ou despertando nele motivação e autocontrole suficientes para perseguir esse objetivo.
E a mente, até onde eu sei, não rima com juntas, cartilagens, músculos e ligamentos.
Então por que convém trazer o tema desse post à tona? Porque em 2016 havia cadastrados no Brasil 206.170 fisioterapeutas. Em pouco tempo serão um quarto de milhão de profissionais. E qual a faculdade que ensinou a eles técnicas de imaginética e derivados? E qual a proporção dos que hoje são praticantes especializados nelas?
Uma resposta
Sou suspeita, mas devo dizer: excelente Post! Parabéns p variar.