Semana passada eu comentei que o cannabis medicinal era, entre outras coisas, diferente da maconha e apontei algumas de suas contribuições à saúde já validadas cientificamente. Pelos comentários recebidos, todavia, penso que eu devia ter começado voando mais baixo. Pelo be-a-bá do tema. Não quero desrespeitar ninguém, mas o nível de desinformação – e de preconceito, aliás – a respeito é profundo. E superficial demais. Resolvi, então, postar algo para quem deseja se informar preliminarmente sobre o cannabis medicinal.
“A ilegalidade do cannabis é ultrajante, um impedimento à plena utilização de uma droga que ajuda a produzir a serenidade e o discernimento, a sensibilidade e a camaradagem tão desesperadamente necessários neste mundo cada vez mais louco e perigoso.”
“A grande maioria do uso de cannabis é para fins de bem-estar. A exceção à regra é o uso indevido; qualquer material psicoativo pode e será problemático para alguma porcentagem da população – incluindo o cannabis.”
Uma visão rápida e precisa do tema é dada pelo resumo do “USO INDEVIDO E DEPENDÊNCIA DE OPIOIDES: DA PREVENÇÃO AO TRATAMENTO”, publicado no ano passado na Revista de Medicina de Família e Saúde Mental (Editora UNIFESO).
Outras referências úteis e um vídeo são disponibilizados no fim desse post.
Cannabis para curiosos e desavisados
O ópio é fabricado a partir da extração da papoula (Papaver somniferum)1Bicca C, Ramos P, Campos V. Projeto Diretrizes: Abuso e Dependência dos Opioides e Opiáceos. Associação Médica Brasileira, 31 de outubro de 2012.. Seu uso foi reconhecido como narcótico por Hipócrates em 460 a.C.; em 1803, Friedrich Sertürner sintetizou a morfina, e em 1843, foi descoberto sua administração injetável pelo médico Alexandre Wood2Bicca C, Ramos P, Campos V. Projeto Diretrizes: Abuso e Dependência dos Opioides e Opiáceos. Associação Médica Brasileira, 31 de outubro de 2012.. Dessa maneira, o uso do ópio acompanhou o desenvolvimento da civilização3Bicca C, Ramos P, Campos V. Projeto Diretrizes: Abuso e Dependência dos Opioides e Opiáceos. Associação Médica Brasileira, 31 de outubro de 2012..
Os opiáceos são classificados em
- naturais, substâncias extraídas diretamente do cálice da papoula;
- semissintéticos, sendo a heroína (diacetilmorfina) o primeiro descrito na literatura médica por Wright, em 1874; e
- sintéticos4Bicca C, Ramos P, Campos V. Projeto Diretrizes: Abuso e Dependência dos Opioides e Opiáceos. Associação Médica Brasileira, 31 de outubro de 2012..
Os medicamentos opioides são medicamentos prescritos para o tratamento e alívio da dor. Dizem-se por esta razão que são medicamentos analgésicos. São medicamentos úteis no alívio de dor, mas também não são isentos de riscos.
Existem vários medicamentos opioides e em formatos diferentes (comprimidos, cápsulas, adesivos/emplastros, gotas, spray etc.). Apenas pode se tomar estes medicamentos quando prescritos por um médico, após um diagnóstico clínico e na presença de uma dor moderada a forte.
Apesar de os opioides e os opiáceos serem substâncias de origem e estruturas diferentes, eles possuem ações e efeitos clínicos semelhantes5Bicca C, Ramos P, Campos V. Projeto Diretrizes: Abuso e Dependência dos Opioides e Opiáceos. Associação Médica Brasileira, 31 de outubro de 2012.. Atuam em receptores opioides específicos pré e pós-sinápticos e geralmente são encontrados no sistema nervoso central (cérebro e medula espinhal) e no sistema periférico6Bicca C, Ramos P, Campos V. Projeto Diretrizes: Abuso e Dependência dos Opioides e Opiáceos. Associação Médica Brasileira, 31 de outubro de 2012..
Os opioides são substâncias fabricadas em laboratório, sintéticas, conhecidos por causar narcose devido sua ação analgésica e hipnótica7Bicca C, Ramos P, Campos V. Projeto Diretrizes: Abuso e Dependência dos Opioides e Opiáceos. Associação Médica Brasileira, 31 de outubro de 2012..
A “Crise dos Opioides” foi iniciada pela prescrição excessiva e indiscriminada destas medicações para o tratamento da dor8Volkow ND, EB Jones, Eb Einstein, EMWargo. Prevention and Treatment of Opioid Misuse and Addiction: A Review. JAMA Psychiatry. doi:10.1001/jamapsychiatry.2018.3126 Published online December 5, 2018.. A junção desses fatores propicia a dependência, overdose e até mesmo óbito, e em algumas vezes sem a obtenção da eficácia analgésica9Volkow ND, EB Jones, Eb Einstein, EMWargo. Prevention and Treatment of Opioid Misuse and Addiction: A Review. JAMA Psychiatry. doi:10.1001/jamapsychiatry.2018.3126 Published online December 5, 2018.. Desde o final dos anos 90, nos Estados Unidos, a prevalência do uso e abuso de opioides sob prescrição médica aumentou dramaticamente, sendo declarada uma epidemia de overdose no país10Volkow ND, EB Jones, Eb Einstein, EMWargo. Prevention and Treatment of Opioid Misuse and Addiction: A Review. JAMA Psychiatry. doi:10.1001/jamapsychiatry.2018.3126 Published online December 5, 2018.11Brady KT, McCauley JL, Back SE. Prescription Opioid Misuse, Abuse, and Treatment in the United States: An Update. American Journal of Psychiatry, 173(1), 18–26, 2016. doi:10.1176/appi.ajp.2015.15020262.12Park K, Otte A. Prevention of Opioid Abuse and Treatment of Opioid Addiction: Current Status and Future Possibilities. Annual Review of Biomedical Engineering, 21(1), 2019. doi:10.1146/annurev-bioeng-060418-052155.
Estima-se 12 a 21 milhões de usuários no mundo inteiro, sendo que três quartos deles usam heroína e 80% dos consumidores são americanos13Bicca C, Ramos P, Campos V. Projeto Diretrizes: Abuso e Dependência dos Opioides e Opiáceos. Associação Médica Brasileira, 31 de outubro de 2012.. As vendas dessas medicações cresceram cerca de 149% em 10 anos.
Já no Brasil, um levantamento revelou que 1,3% da população faz uso de opioides e a incidência de heroína é de 0,09%14Bicca C, Ramos P, Campos V. Projeto Diretrizes: Abuso e Dependência dos Opioides e Opiáceos. Associação Médica Brasileira, 31 de outubro de 2012.. O país é o maior consumidor de analgésicos opioides da América do Sul15Bicca C, Ramos P, Campos V. Projeto Diretrizes: Abuso e Dependência dos Opioides e Opiáceos. Associação Médica Brasileira, 31 de outubro de 2012.. O risco de uso e dependência está limitado a pessoas que desenvolvem dependência após tratamento médico e aos profissionais de saúde que possuem acesso à droga16Bicca C, Ramos P, Campos V. Projeto Diretrizes: Abuso e Dependência dos Opioides e Opiáceos. Associação Médica Brasileira, 31 de outubro de 2012.. A taxa do uso nocivo entre médicos é estimada em 4% e a dependência em 22,7%17Bicca C, Ramos P, Campos V. Projeto Diretrizes: Abuso e Dependência dos Opioides e Opiáceos. Associação Médica Brasileira, 31 de outubro de 2012..
Entre os fármacos mais procurados de maneira ilícita estão a oxicodona e a hidrocodona, com maiores proporções que a morfina e fentanil. Em contrapartida, entre usuários de rua, a metadona é a mais vendida.18Kraychete D, Garcia J, Siqueira J. Recomendações para o uso de opioides no Brasil: Parte IV. Efeitos adversos de opioides. Rev. Dor vol.15 no.3, São Paulo. Julho/Setembro 2014. http://dx.doi.org/10.5935/1806-0013.20140047.19Kraychete D, Garcia J, Siqueira J. Recomendações para uso de opioides no Brasil: parte I. Rev. dor vol.14 no.4 São Paulo Oct./Dec. 2013. http://dx.doi.org/10.1590/S1806- 00132013000400012.20Stoicea N, Costa A, Periel L, Uribe A, Weaver T, Bergese S. Current perspectives on the opioide crisis in the US healthcare system: a comprehensive literature review. Medicine (Baltimore). 2019 May; 98(20): e15425. doi: 10.1097/MD.0000000000015425.
Diversos fatores de risco foram implicados na dependência de opioides, e incluem idade entre 18-24 anos; sexo masculino; queixa subjetiva de dor em várias partes do corpo; histórico anterior de abuso de álcool, cannabis ou drogas ilícitas; presença de transtornos psiquiátricos; uso de psicotrópicos; aumento do grau de tolerância à dor; antecedente criminal e tabagismo, entre outros.21Volkow ND, EB Jones, Eb Einstein, EMWargo. Prevention and Treatment of Opioid Misuse and Addiction: A Review. JAMA Psychiatry. doi:10.1001/jamapsychiatry.2018.3126 Published online December 5, 2018.22Kraychete D, Garcia J, Siqueira J. Recomendações para o uso de opioides no Brasil: Parte IV. Efeitos adversos de opioides. Rev. Dor vol.15 no.3, São Paulo. Julho/Setembro 2014. http://dx.doi.org/10.5935/1806-0013.20140047.
O Cannabis e o Tratamento da Dor
Nas décadas passadas, médicos foram duramente criticados por subtratar a dor23Brady KT, McCauley JL, Back SE. Prescription Opioid Misuse, Abuse, and Treatment in the United States: An Update. American Journal of Psychiatry, 173(1), 18–26, 2016. doi:10.1176/appi.ajp.2015.15020262.. Após ser considerada como o “quinto sinal vital”, a abordagem do estímulo álgico passou a ser agressivamente questionada24Brady KT, McCauley JL, Back SE. Prescription Opioid Misuse, Abuse, and Treatment in the United States: An Update. American Journal of Psychiatry, 173(1), 18–26, 2016. doi:10.1176/appi.ajp.2015.15020262.. Nos primeiros anos da “Crise dos Opioides”, milhares de mortes foram causadas nos EUA e na Europa pelo uso indevido de analgésicos prescritos, heroína, além dos opioides sintéticos, responsáveis hoje por grande parte dos óbitos.25Volkow ND, EB Jones, Eb Einstein, EMWargo. Prevention and Treatment of Opioid Misuse and Addiction: A Review. JAMA Psychiatry. doi:10.1001/jamapsychiatry.2018.3126 Published online December 5, 2018.26Brady KT, McCauley JL, Back SE. Prescription Opioid Misuse, Abuse, and Treatment in the United States: An Update. American Journal of Psychiatry, 173(1), 18–26, 2016. doi:10.1176/appi.ajp.2015.15020262.27Stoicea N, Costa A, Periel L, Uribe A, Weaver T, Bergese S. Current perspectives on the opioide crisis in the US healthcare system: a comprehensive literature review. Medicine (Baltimore). 2019 May; 98(20): e15425. doi: 10.1097/MD.0000000000015425.
Drogas opioides, contudo, exercem efeitos farmacológicos envolvendo o sistema opioide endógeno, onde atuam como agonistas de diversos receptores, levando à analgesia e efeitos recompensadores. Esses receptores estão presentes em diversas regiões do sistema nervoso central que regulam as emoções e o comportamento. Por um lado, o cannabis age na modulação da dor, o que é benéfico; mas por outro lado, pode gerar ansiedade, depressão e adição.
Diante do exposto, os formuladores de políticas de saúde tentam minimizar os efeitos deletérios do aumento ao acesso aos opioides prescritos, garantindo que a dor seja devidamente abordada28Brady KT, McCauley JL, Back SE. Prescription Opioid Misuse, Abuse, and Treatment in the United States: An Update. American Journal of Psychiatry, 173(1), 18–26, 2016. doi:10.1176/appi.ajp.2015.15020262.. (Veja “Três fontes básicas” logo abaixo)
Um primeiro passo nessa direção é informar a população sobre todo o anterior e muito mais. Muita gente confunde maconha com cannabis, e imagina ambos num contexto recreativo e não medicinal. É uma forma de estigmatizar o cannabis, ao invés de considerá-lo como uma opção promissora para o manejo da dor aguda e crônica. A meu ver, as melhores fontes para se informar desse ângulo são as seguintes:
Três fontes básicas:
- “Opium and opioids: a brief history”, Danilo Freire Duarte. Revista Brasileira de Anestesiologia 2005
- “Opioids”, National Library of Medicine dos Estados Unidos.
- “Cannabis e Cefaleia”. Videoaula ministrada pelo Dr. Jaime Olavo Marquez, neurologista e ex-Presidente da Sociedade Brasileira de Estudos da Dor, cedida especialmente para reprodução neste blog.