Embora o coronavírus atinja os pulmões, os rins, o fígado e os vasos sanguíneos, um número significativo de pacientes relata sintomas neurológicos, incluindo dores de cabeça, confusão e delírio. Este artigo traça um panorama do que acontece, com destaque para um novo estudo abrangendo 19 hospitais nos Estados Unidos, revelando a assustadora proporção de pacientes hospitalizados com Covid-19 que experimentam algum tipo de alteração da função mental – variando de confusão a delírio.
“Um pensamento doentio pode devorar a carne do corpo mais do que febre ou tuberculose.”
Em abril desse ano, a revista Trends in Neurosciences publicou um artigo de autoria de neurocientistas brasileiros e canadenses, indicando que a Covid-19 podia “afetar o sistema nervoso central e prejudicar o funcionamento do cérebro a longo prazo.”1[Internet] europepmc.org. Acesse o link
O objetivo expresso era o de alertar a comunidade médica e científica sobre “a importância de acompanhar os pacientes infectados com o novo coronavírus mesmo depois que eles se recuperarem dos sintomas respiratórios.”2[Internet] dorcronica.blog.br. Acesse o link
Se a tal comunidade recebeu o alerta, ou se reagiu oportunamente a ele, eu não sei. Afinal, era um alerta baseado em “outros vírus que têm como alvo o Sistema Nervoso Central e causam alterações neurológicas, incluindo inflamação cerebral e encefalomielite”.3[Internet] europepmc.org. Acesse o link
Seis meses depois, no entanto, o assunto vem de novo à tona, agora montado em tristes fatos.
Embora o coronavírus atinja os pulmões, os rins, o fígado e os vasos sanguíneos, um número significativo de pacientes relata sintomas neurológicos, incluindo dores de cabeça, confusão e delírio.
O delírio, também denominado estado confusional agudo ou encefalopatia tóxica ou metabólica, ou “função mental alterada”, pode ocorrer em qualquer idade, mas é mais comum entre idosos. Pelo menos de 15 a 50% o apresentam em algum período durante a hospitalização. A anomalia também ocorre na pós-cirurgia e em pacientes de UTI.
Quais são os sintomas? Problemas de atenção e concentração, perda de memória de curto prazo, desorientação, estupor e “falta de responsividade profunda” ou um nível de consciência semelhante ao coma. Vira e mexe, o portador se torna retraído e incomunicável.
Agora são os pacientes com a Covid-19, de todas as idades, sem prejuízo cognitivo prévio, e que passaram por uma UTI, nos Estados Unidos, que estão apresentando “função mental alterada”. Cerca de dois terços a três quartos deles a experimentaram de várias maneiras. Alguns têm “delírio hiperativo”, alucinações paranoides e agitação; e outros, “delírio hipoativo”, visões internalizadas e confusão – e alguns têm ambos.4[Internet] pubmed.ncbi.nlm.nih.gov. Acesse o link
De fato, já em março, um outro estudo, publicado no British Medical Journal, descobrira distúrbios de consciência, variando de sonolência a coma profundo, em 22% de 113 pacientes de Wuhan, China, que morreram de Covid-19. Apenas 1% dos pacientes recuperados mostrou o mesmo.5[Internet] bmj.com. Acesse o link
Em julho, um grupo de nada menos que 60 pesquisadores ligados ao University College London, Queen Square Institute of Technology, examinaram 43 pacientes com Covid-19, concluindo que:
“A infecção por SARS-CoV-2 está associada a um amplo espectro de síndromes neurológicas que afetam todo o neuroeixo, incluindo a vasculatura cerebral e, em alguns casos, respondendo a imunoterapias. A alta incidência de encefalomielite disseminada aguda, particularmente com alteração hemorrágica, é impressionante. Essa complicação não foi relacionada à gravidade da doença respiratória Covid-19.”6[Internet] academic.oup.com. Acesse o link
Em bom português, os pacientes que pegaram o novo coronavírus passaram a desenvolver complicações neurológicas, incluindo comprometimento cognitivo, problemas de locomoção ou caminhada e alucinações e delírios.7[Internet] gizmodo.uol.com.br. Acesse o link
Também em julho, a Sociedade Espanhola de Neurologia compilou os estudos mais recentes realizados na Espanha sobre a conexão entre a Covid-19 e todo o sistema nervoso. Desde pesquisas focadas na alteração dos sentidos do olfato e paladar até um trabalho sobre dores de cabeça sofridas por banheiros infectados, acompanhando mais de 1.600 pacientes. Quase 20% dos pacientes infectados estudados apresentaram algum distúrbio de consciência, embora esse sintoma estivesse concentrado em idosos. Destaque para uma pesquisa que utilizou uma amostra de 841 pacientes internados em dois hospitais de Albacete, uma cidade do tamanho de Maringá (Paraná), dentre os quais 57,4% desenvolveram um ou mais sintomas neurológicos.8[Internet] saude.ig.com.br. Acesse o link
“As complicações neurológicas da infecção com a Covid-19 parecem ser frequentes e em muitos casos duradouras, mas ainda não têm recebido muita atenção”.
As consequências prejudiciais do delírio podem demorar muito tempo em passar, prolongando a permanência no hospital, retardando a recuperação e aumentando o risco das pessoas de desenvolver depressão ou estresse pós-traumático. Pacientes anteriormente saudáveis podem desenvolver demência mais cedo do que de outra forma e também morrer mais cedo.9[Internet] pubmed.ncbi.nlm.nih.gov. Acesse o link
“Há risco aumentado de déficits cognitivos temporários ou até permanentes”
Agora, um novo estudo revelou que quase um terço dos pacientes hospitalizados com Covid-19 experimentam algum tipo de alteração da função mental – variando de confusão a delírio a falta de resposta. O estudo analisou os registros dos primeiros 509 pacientes com coronavírus hospitalizados, de 5 de março a 6 de abril, em 10 hospitais do sistema de saúde da Northwestern Medicine na área de Chicago. Ele foi publicado na revista Annals of Clinical and Translational Neurology.10[Internet] beckershospitalreview.com. Acesse o link
Em suma, os pacientes com função mental alterada:
- tiveram resultados médicos significativamente piores;
- permaneceram três vezes mais tempo no hospital do que pacientes sem função mental alterada;
- depois de terem alta, apenas 32% foram capazes de lidar com as atividades diárias de rotina, como cozinhar e pagar contas; e
- tinham quase sete vezes mais chances de morrer do que aqueles que não tinham esse tipo de problema.
O novo coronavírus afeta um grupo relativamente pequeno de pessoas, mas prova o extenso alcance do vírus sobre o organismo humano; no caso, provavelmente por via indireta. Ele talvez não ataque diretamente as células cerebrais de todo mundo. É provável que seus efeitos neurológicos sejam desencadeados por respostas inflamatórias e do sistema imunológico que geralmente afetam outros órgãos, além do cérebro. De fato, os 162 pacientes com encefalopatia incluídos no estudo tinham maior probabilidade de ser mais velhos e do sexo masculino. Eles também eram mais propensos a ter condições médicas subjacentes, incluindo histórico de qualquer distúrbio neurológico, câncer, doença cerebrovascular, doença renal crônica, diabetes, colesterol alto, insuficiência cardíaca, hipertensão ou tabagismo.
E por fim, as condições do internado com Covid-19 numa UTI – dias ou semanas ligados a ventiladores, tomando sedativos pesados e com sono insatisfatório – são altamente convidativas a experimentar delírio. Além disso, os pacientes ficam em sua maioria imóveis, são ocasionalmente contidos para impedi-los de desconectar acidentalmente os tubos e recebem interação social mínima (sem visitas e atendidos por gente parecendo extraterrestres).
“Função mental alterada”, convém agregar, não foi a única complicação neurológica encontrada pelo estudo da Northwestern. Ao todo, 82% dos pacientes hospitalizados apresentaram sintomas neurológicos em algum momento do curso da doença, desde o início dos sintomas até a hospitalização, concluiu o estudo.11[Internet] nytimes.com. Acesse o link
- Entre os sintomas neurológicos, dor muscular ocorreu em cerca de 45% dos pacientes e dores de cabeça em cerca de 38%.
- Cerca de 30% tiveram tonturas.
- Porcentagens menores apresentaram alterações de paladar ou olfato.
- Cerca de um quarto dos pacientes tinha problemas respiratórios graves o suficiente para exigir ventiladores, enquanto o restante foi considerado moderadamente doente e foi tratado em terapia intensiva ou em uma enfermaria de Covid.
Atualmente, não há mais quem pense na Covid-19 como uma doença que afeta apenas os pulmões, ou o sistema respiratório – como se pensava originalmente. Aos poucos foi ficando claro que ela também afeta os rins, o fígado e os vasos sanguíneos. E agora um número significativo de pacientes relata sintomas neurológicos. Não mais trata-se de casos isolados e isso está sendo notado em diversas latitudes.12[Internet] rededorsaoluiz.com.br. Acesse o link
A Universidade de Brescia, na Itália, abriu uma unidade NeuroCovid separada para cuidar de pacientes com doenças neurológicas.
O CoroNerve Group investiga as características neurológicas da Covid-19 no Reino Unido por meio de uma rede de portais destinados à notificação de casos e voltada a especialistas e entidades das áreas de neurologia e psiquiatria.13[Internet] coronerve.com. Acesse o link
Para os pacientes potenciais da Covid-19 e as pessoas que cuidam deles, os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (EUA) agora incluem “nova confusão ou incapacidade de despertar” entre os sinais de alerta que devem levar à decisão de procurar atendimento médico imediato.14[Internet] nytimes.com. Acesse o link