O Triângulo das Bermudas, também conhecido como Triângulo do Diabo, é uma lenda urbana focada em uma região vagamente definida na parte ocidental do Oceano Atlântico Norte, onde várias aeronaves e navios teriam desaparecido em circunstâncias misteriosas: um espaço vazio do qual a realidade foi misteriosamente sugada. Esse post se refere a uma área da medicina clínica da dor delimitada por três fronteiras – fibromialgia, ansiedade e depressão – onde ocorre o mesmo. Dados de duas pesquisas sobre pacientes com fibromialgia, uma qualitativa e a outra quantitativa, expressam o muito que a ansiedade e a depressão afetam os pacientes com fibromialgia.
“O meu cérebro é como o Triângulo das Bermudas… A informação entra e então nunca mais é achada”.
O NewLifeOutlook (NLO) é uma família de sites que se concentra nas pessoas que vivem com doenças crônicas – e não na doença em si. Seus condutores afirmam se oferecer informações práticas para ajudar essas pessoas a lidar melhor com a vida cotidiana pós-diagnóstico e a se conectar com outras pessoas que compartilham suas experiências. (A NLO não é uma organização filantrópica.)
A maioria dos pacientes com fibromialgia também é diagnosticada com depressão e ansiedade. Ontem eu li sobre os resultados de uma pesquisa online realizada pela NLO abrangendo 671 “fibromiálgicos” em todo o mundo, os que me deixaram pensando.
Quase dois terços deles também foram diagnosticados com depressão.
Uma novidade?
Nenhuma.
As evidências de uma pesquisa online não têm valor científico, eu reconheço. Mas, no caso, possivelmente se aproximam da realidade. Por outro lado, a relação entre fibromialgia e problemas de saúde mental como depressão e ansiedade é conhecida da ciência médica há duas décadas.1[Internet] Pubmed.ncbi.nlm.nih.gov. Acesse o link.2[Internet] Onlinelibrary.wiley.com. Acesse o link.
No paciente portador de fibromialgia, a presença de um fator piora o outro, dinamicamente. Os sintomas fisiológicos da fibromialgia geram estresse adicional, que atrai ansiedade, que aumenta os sintomas físicos e por aí vai. Um belo círculo vicioso.
“Eu costumava me orgulhar do meu trabalho, [ou seja] ser capaz de terminar tudo, ser capaz… para fazer tarefas extras que não foram atribuídas, [até] minhas tarefas domésticas em casa. Se eu acordar uma manhã e decidir: “Ah, vou passar o aspirador hoje”, [descobrirei que] não posso aspirar ou esfregar no mesmo dia porque simplesmente não consigo fazer isso. Eu tenho que ir deitar.”
O que alimenta esse círculo? Eu vou apontar apenas os ingredientes mais importantes: estigmatização, incerteza e ignorância.
Estigmatização
As dúvidas sobre a legitimidade da fibromialgia como condição médica também têm um impacto psicológico.
“É difícil lidar com uma doença quando as pessoas ao seu redor não entendem o que você passa diariamente”, disse uma pessoa entrevistada.
“Já lidei com médicos, amigos e familiares que nem se preocupam em esconder suas dúvidas, e até descartam meus sintomas e lutas diárias”, comentou outro.
“Minha mãe e eu conversamos sobre isso. Quando você precisa de uma prótese de quadril, você vai de A a B e a C e sabe o que vai acontecer. E todo mundo respeita o que você está passando e sabe como lidar com isso. Eu acho que é difícil… é que ninguém aqui realmente entende [o que estou dizendo] – ainda não encontrei um médico [que] reconheça isso [fibromialgia] como algo legítimo.”
Incerteza
Uma das primeiras surpresas experimentadas pelo paciente-marinheiro-de-primeira-viagem na fibromialgia resulta de constatar que descobrir um médico versado e experiente no assunto pode levar meses. Ou anos.
Culpa de quem? Sei lá. A fibromialgia é uma síndrome complexa, atualmente muito estudada, porém de etiologia ainda pouco esclarecida em toda sua extensão e profundidade. Se muitos profissionais da saúde sentem-se impotentes diante da fibromialgia, não é somente porque não estudam dor crônica na faculdade, mas também por causa do atual “estado da arte” da medicina a respeito. Ele é ainda precário, com hipóteses superando de longe as descobertas firmes.
“Saber o que enfrento à medida que envelheço normalmente é suficiente para fazer você pensar… Quando você coloca algo como isto (fibromialgia) em cima disso, certamente lhe dá mais uma razão para se preocupar com o que você vai enfrentar e como isso [pode] combinar com outras coisas… Temo acabar em uma cadeira de rodas mais cedo do que deveria.”
O tempo que leva para os pacientes com fibromialgia receberem o diagnóstico é uma outra fonte de incerteza.
Na pesquisa da NewLifeOutlook…
- …quase 30% dos entrevistados disseram que experimentaram sintomas durante cinco ou mais anos antes de receberem o diagnóstico.
- …pouco menos de 8% receberam o diagnóstico um ano após o início dos sintomas.
- …cerca de 40% receberam o diagnóstico entre um e três anos, enquanto cerca de 20% esperaram entre três e cinco anos.
Ou seja, o diagnóstico da fibromialgia também é um fator de estresse. A incerteza agudiza a ansiedade e gera raiva, o que em nada ajuda a amenizar a dor e outros sintomas coadjuvantes.
Então, convenhamos, essa conexão entre saúde física e mental é algo que as pessoas que vivem com a doença entendem muito bem.
Uma maior consciência e compreensão da fibromialgia e dos seus sintomas, conduzida pelos profissionais da saúde que cuidam deles, pode contribuir muito para diminuir esse vazio triangular que hoje assombra suas possibilidades de recuperação.
Certo. Concluir tal obviedade, no entanto, chega a ser constrangedor. Algo assim como concluir que o fogo é quente, ou que a Receita Federal é mais forte que você, ou que as segundas feiras são mais longas que as sextas.
Porque se a relação entre fibromialgia, depressão e ansiedade é tão manjada, e se conhecê-la (e manejá-la) seria tão benéfico para os pacientes e seus médicos (as)… por que a tríade raramente é sequer mencionada numa consulta típica?