Postagens sobre o que pensa o Dr. Haider Warraich, médico cardiologista, escritor e pesquisador clínico, e como eu, ex-paciente crônico, já apareceram por aqui. O seu livro mais famoso “The song of our scars”, é um relato pessoal e impiedoso de um médico sobre como o fracasso da medicina moderna em entender a dor tornou os cuidados da saúde humana menos eficazes. “Precisamos fazer da medicina centrada no paciente uma realidade, não um slogan publicitário”, escreve ele. Se o fizesse no Brasil ia ganhar desmentidos mil e até um processo do Conselho Federal de Medicina, na certa. O problema de expor a verdade e os fatos, em se tratando da atual postura da medicina diante da dor crônica, dá nisso. Nesse post, que reúne trechos de um artigo publicado no The New York Times, Warraich culpa o sistema médico americano em geral – organizações médicas, farmacêuticas e autoridades sanitárias – pelo problema com os opioides, que em apenas um ano (2017) causou a morte por overdose dos mesmos quase 50 mil americanos também mortos na Guerra do Vietnã. E de quebra, faz algumas exigências, a meu ver um tanto ingênuas: que o manejo da dor seja ensinado nas faculdades de medicina e que os médicos “pratiquem a medicina do jeito que era muito antes da descoberta da morfina”. Difícil, difícil…
“Nosso sistema de saúde falha quando um médico falha em tratar uma doença tratável.”
Os antigos gregos consideravam a dor uma paixão – uma emoção em vez de uma sensação como o tato ou o cheiro. Durante a Idade das Trevas na Europa, a dor era vista como uma punição pelos pecados, uma experiência espiritual e emocional aliviada por meio de orações em vez de prescrições.
No século XIX, a secularização da sociedade ocidental levou à secularização da dor. Não era mais uma paixão a ser suportada, mas uma sensação a ser reprimida.
O conceito de dor como um fenômeno puramente físico atingiu seu apogeu na década de 1990, quando organizações médicas conseguiram que a dor fosse designada como um “quinto sinal vital”, juntamente com a pressão arterial, a temperatura e a respiração e frequência cardíaca.
Isso coincidiu com o lançamento de opioides de ação prolongada como o OxyContin. Os médicos acreditavam que agora tinham um remédio eficaz para o sofrimento de seus pacientes.
Embora os opioides ajudem muitos pacientes com dores agudas decorrentes de lesões, cirurgias ou condições como câncer, olhando para trás, hoje fica claro que o uso de opioides para tratar dores crônicas – dores nas costas, joelhos machucados e afins – pode muito bem ser considerado o pior erro médico de nossa era.
Décadas de pesquisa sugerem que os opiáceos fornecem pouco ou nenhum benefício para a dor crônica não oncológica.1[Internet] Ncbi.nlm.nih.gov. Acesse o link.
Um recente estudo randomizado de pessoas com dores crônicas nas articulações e nas costas mostrou que os pacientes que usam opioides sentem um pouco mais de dor em comparação com aqueles que usam medicamentos como acetaminofeno e ibuprofeno.2[Internet] Jamanetwork.com. Acesse o link.
Por quê? Estudos demonstraram que os opioides podem reduzir os limiares de dor dos pacientes. Eles também podem resultar em uma condição chamada hiperalgesia induzida por opioides, na qual as pessoas sentem cada vez mais dor à medida que recebem doses cada vez mais altas de opioides.
O pensamento convencional sobre a dor como um estímulo puramente físico claramente nos falhou
Embora a expressão de que o sofrimento está “tudo na sua cabeça” seja usada com muita frequência para diminuir a agonia dos outros, a mente desempenha um papel fundamental na experiência da dor. Depois que um sinal de dor chega ao cérebro, ele passa por um reprocessamento significativo.
O quanto algo dói pode variar dependendo de fatores como suas expectativas, seu humor e quão distraído você está. Ver outra pessoa com dor também pode fazer você se sentir pior. Esse fenômeno foi demonstrado em estudos com roedores e humanos. Em outras palavras, a dor é contagiosa e transmissível.
Existe também uma associação incrivelmente forte entre dor e saúde mental.3[Internet] Pubmed.ncbi.nlm.nih.gov. Acesse o link.
Condições como depressão e ansiedade aumentam muito a chance de desenvolver dor crônica, enquanto os pacientes que sentem dor correm alto risco de desenvolver depressão ou ansiedade. Esse ciclo vicioso é em parte resultado do fato de que há uma sobreposição considerável nas áreas do cérebro que lidam com a dor e a emoção.
A dor, está intimamente ligada a problemas de saúde mental, como depressão e transtorno obsessivo compulsivo. Tudo isso não quer dizer que não haja componente físico para esses sentimentos. Objetivamente, não há dúvida de que doenças e lesões podem causar imenso sofrimento. A questão é quão severo é esse sofrimento e quanto tempo dura.
Enquanto isso, há muito que podemos fazer para lidar com a epidemia de dor nos Estados Unidos. Por muito tempo, a indústria farmacêutica obscureceu nossa visão. Acabou de ser revelado em processos judiciais que as empresas farmacêuticas subestimaram muito os riscos dos opioides, enquanto bilhões de dólares em marketing diziam às pessoas que as pílulas eram a única resposta para suas doenças.
Há uma necessidade premente de aumentar o financiamento para a pesquisa de estratégias que não envolvam apenas o uso de mais drogas. Nem toda pessoa que experimenta dor aguda desenvolve dor crônica. Precisamos aprender mais sobre quais intervenções funcionam para evitar essa transformação.
O controle da dor deve continuar a ser enfatizado na educação médica, mas os futuros médicos devem aprender que a dor é parte da história da pessoa que a sofre, não apenas um fenômeno físico separado. E essa educação deve incorporar maneiras de evitar a prescrição de opioides para uso crônico.
Talvez a ferramenta mais importante que os médicos precisam para lidar com a dor seja a empatia
Se a dor crônica é tanto uma emoção quanto uma sensação, então é improvável que seja tratada com sucesso sem compaixão. Um estudo de 2017 com médicos na Espanha descobriu que aqueles cujos pacientes os classificaram como empáticos eram mais eficazes em aliviar a dor de seus pacientes. A fisioterapia, que não apenas manipula as articulações, mas também aborda o contexto em que a dor ganha vida, incentiva o otimismo e desenvolve a resiliência emocional, tem se mostrado mais eficaz do que os tratamentos biomédicos, baseados em fármacos.
Tudo isso leva mais tempo e atenção do que apenas prescrever uma pílula e, infelizmente, nosso sistema de saúde incentiva os médicos a atender o maior número possível de pacientes o mais rápido possível. Precisamos mudar a forma como os médicos são pagos para dar a eles tempo para realmente conversar com os pacientes sobre sua dor.
Quando alguém sente dor crônica, não há como quantificá-la – nenhum exame de sangue a ser feito, nenhum exame de imagem a ser solicitado. Exige que os médicos pratiquem a medicina do jeito que era muito antes da descoberta da morfina. Em essência, representa o mais puro dos encontros médicos e uma oportunidade, se não para curar, então para aliviar.