Psicologia da Dor - by dorcronica.blog.br

A dor do luto: ela também pode ser aguda ou crônica

A dor no luto pode ser aguda ou se tornar crônica

A dor do luto, que eu saiba, não tem cabida em nenhum tratado médico. Existe dor nocioceptiva, psicogênica, nociplástica… mas nada de dor resultante da perda de um irmão, pai ou amigo fraterno. Talvez isso mude, porém. Pouco importa agora, mergulhados que estamos numa crise de saúde pública, mas essa crise é também psicológica, e caracterizada pela ansiedade, estresse e tristeza advindas da perspectiva, real ou imaginária, da morte. Tudo isso, englobado em algo chamado de “dor do luto”. Uma dor que, mesmo sendo emocional, não fica devendo à dor física no que se refere a deixar marcas no conjunto mente-corpo. Cedo ou tarde, o sistema médico terá que acolher um número crescente de pacientes sofrendo disso. Convém ir se informando a respeito.

Dizem os estudiosos que a dor do luto se iguala à de pacientes que experimentam a dor psíquica que acompanha a depressão aguda. E a dor física de quem sofre de dor visceral, por exemplo, será que também se iguala? Ela pode ficar crônica? E se tal for o caso, como a biomedicina trata essa dor? Veja aqui algumas considerações infelizmente oportunas considerando tragédias recentes.

“Chorar é menosprezar a profundidade do luto.”

– William Shakespeare, King Henry VI, Part 3

Nos dias posteriores às tragédias ocorridas pelas mortes por Covid-19, por exemplo, a maioria de nós se faz uma simples pergunta:

“Quanta dor será que essas pessoas – filhos, pais, mães, irmãos… – estão sofrendo?”

E a resposta, também simples, é: não sabemos.

É que a biomedicina não aceita a dor emocional como um sintoma fisiológico. Confinada ao âmbito mental, a dor do luto clinicamente não existe. Como saber a respeito de algo que não existe?

Na prática e em geral, a maioria dos cientistas que estudam a dor e os doutores que tratam a dor consideram a experiência dolorosa um fenômeno estritamente físico, no sentido que pode somente ser causado por um ferimento ao corpo.

Ou seja, se você está ferido, a gente sabe o que fazer. Não há lesão? O exame de imagem deu em nada? Então só cabe lamentar, sou solidário, porém vai bater noutra porta, aquela com um letreiro que começa com “PSI”.

Isso está errado? Está, e por duas razões:

  1. porque hoje há evidências científicas de que a dor emocional existe como dor, ela dói.
  2. porque embora haja como lidar com a emoção e seus efeitos deletérios na mente (ansiedade, depressão etc.), na prática, essa tecnologia desaparece quando os efeitos são físicos.

“A dor ocorre quando os receptores nas células nervosas na pele e nos órgãos internos detectam estímulos potencialmente nocivos, um beliscão, por exemplo, ou altas temperaturas. O nociceptores, em seguida, sinalizam o cérebro, que avalia a ameaça e coordena uma série de respostas protetoras. Puxamos o braço para longe da chama; descansamos a perna quebrada. Este sistema de alerta biológico é altamente eficaz. Ele impede mais danos e ajuda na cura, enfim, é algo sem o qual não podemos viver muito bem.”

Porém, o que acontece no caso de uma mãe que perdeu o filho em Brumadinho? Ou a filha que perdeu os pais para a Covid-19? Elas não sofreram qualquer lesão física, mas você não negaria que ambas estão sofrendo talvez como nunca antes na vida!

Segundo David Biro, médico americano, autor de The Language of Pain: Finding Words, Compassion, and Relief, a dor do luto se iguala a de pacientes que experimentam a dor psíquica que acompanha a depressão aguda. Ou a de pacientes com câncer (e seus pais) que experimentam o medo, a ansiedade e o isolamento esmagadores que acompanham os sintomas físicos de suas doenças.

“Seus nociceptores, pelo menos com respeito a estes sentimentos particulares, permanecem silenciosos, sem emitir nenhum sinal de aflição ao cérebro. Portanto, seus sentimentos não são realmente dor, mas algo categoricamente diferente, o que os profissionais preferem chamar de sofrimento ou angústia. E consequentemente, não se encontra nenhuma menção a sofrimento ou a depressão nos esquemas médicos de classificação da dor.”

Dessa forma, a medicina reflete um preconceito social, não uma verdade biológica. Ora, se seu tornozelo inchar, mesmo que ligeiramente, seu desconforto físico será notado e você terá compaixão e consideração. Mas se você sentir que a perda da pessoa amada lhe produz tamanha angústia que você não consegue sequer se concentrar, você arrisca ser visto com comiseração apenas.

A dor emocional com consequências físicas, então, vai para uma espécie de Gulag patológico: existe, porém, é o mesmo que se não existisse.

Diga isso a quem já viveu a pena de perder um ser muito querido. Nos dias ou meses posteriores ao evento, ele ou ela provavelmente sofreu alguns dos transtornos seguintes e ainda não sabe o por quê:

As Dores Físicas que a Dor Emocional (provavelmente) provoca

1. Problemas Cardíacos

Existem riscos cardíacos específicos associados ao luto. Um estudo descobriu que a morte de um ente querido aumenta a chance de um ataque cardíaco. Há também uma síndrome temporária específica provocada por isso chamada poeticamente de “síndrome do coração partido”. Ela é causada por uma interrupção no sangue bombeado para uma parte do coração. (O nome técnico é cardiomiopatia de takotsubo – nada poético.)

2. Imunidade Baixa

Adultos mais velhos que sofrem de luto devido à perda de um cônjuge, não conseguem manter um equilíbrio do hormônio do estresse. Eles também são menos propensos a produzir alguns tipos de glóbulos brancos, propiciando infecções.

3. Dores no Corpo

O luto pode causar dor nas costas, dor nas articulações, dores de cabeça e rigidez. A dor é causada pela enorme quantidade de hormônios do estresse sendo liberados durante o processo de luto. Estes efetivamente “atordoam” os músculos que eles contatam, especialmente o pescoço.

4. Questões Digestivas

O luto faz sentir o estômago enjoado, assim como perda de apetite, compulsão alimentar, náusea e síndrome do intestino irritável.

5. Problemas cognitivos

Tontura, perda de concentração.

6. Mecanismos de Enfrentamento Não-Saudáveis

Durante o processo de luto alguns podem recorrer ao consumo excessivo de álcool ou fumo, com efeitos duradouros no fígado e nos pulmões.

7. Problemas de Sono e Fadiga

A insônia é comum, ainda que temporária, naqueles que estão sofrendo…

A Dor do Luto e a Dor Crônica

E tem mais e pior. Para alguns o luto não acaba nunca. Memórias da perda do ente querido acendem os receptores de recompensa no cérebro. A pessoa vicia-se na tristeza e seguir em frente fica difícil. É como se a pessoa experimentasse a Síndrome de Estocolmo com a tristeza no papel do sequestrador. Um ciclo de luto extenso equivale a ter estresse crônico e este, sabe-se, está associado a dor crônica. Ou seja, um longo período de luto pode significar o risco de danos físicos e mentais.

“O que poderia ter sido um sintoma de curto prazo – dores no peito, dores no estômago ou problemas de sono, por exemplo – pode se manifestar de maneiras muito mais sérias. Estas podem incluir doenças cardíacas, distúrbios alimentares ou fadiga crônica.”

Em suma, a dor emocional (como a dor do luto) não apenas dói fisicamente no momento. Se repetida, ela pode resultar em dor crônica. (Até porque essa dor não acontece isoladamente, num vácuo. Distúrbios mentais como a ansiedade, a raiva e a depressão, quase sempre a acompanham.)

A Saída

O Dr.Biro culpa o paradigma biomédico convencional que separa o corpo da mente pelo fato de atualmente não haver resposta médica para a dor do luto. E propõe ver “…a dor como ocorrendo em um continuum ou espectro que rola de um prisma ideal (dor ligada somente ao ferimento físico) a outro (dor ligada somente ao ferimento psicológico)”.

Esse espectro de dor refleteria melhor à experiência comum de que “…nunca há dor psicológica puramente física, nem dor física pura, mas sempre combinações. Aqueles que sofrem de dor de luto e doença mental muitas vezes têm queixas somáticas. Ao mesmo tempo, pacientes com dor física inevitavelmente sofrem emocionalmente; pacientes com câncer rotineiramente se sentem aterrorizados, indefesos e solitários.”

O Epílogo

A pandemia Covid-19 mudou a forma em que nos relacionamos com a morte. Nós a tememos à noite, enquanto a insônia toma conta, e a aceitamos como algo corriqueiro durante o dia. Hoje, sequer nos comove que o cuidado dos moribundos dependa de tubos, ou que não haja como dizer adeus à pessoa amada que vai embora para sempre.

A dor psicológica existe e é tão importante e digna de nossa atenção quanto a dor física. Eles são dois lados da mesma moeda e devem ser falados e tratados como tais. No período pós-Covid-19, que vai durar anos, haverá a necessidade de fornecer atendimento médico e psicológico a muita gente vitimada emocionalmente pela experiência pandêmica. Suponho que a essa altura, os médicos de primeiro atendimento, sabendo dos efeitos fisiológicos da dor emocional irão se dar ao trabalho (aliás, árduo e demorado) de examinar o conjunto mente-corpo ao invés de simplesmente repassar pacientes a psicólogos ou assistentes sociais, como atualmente, na prática, é de praxe.

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