“O distanciamento social durante o isolamento evoca a formação de sofrimento social, aumentando a intensidade do medo aprendido que as pessoas adquirem, consequentemente potencializando a dor emocional e social.” Este artigo posiciona esta afirmação no contexto da pós-pandemia. Ele se refere a herança de perturbações “psicosocioespirituais” que o atual surto viral irá deixar em pé, no Brasil, após se esvair. O seu mérito é mostrar que tais anomalias, embora não físicas, vão doer tanto quanto uma dor física. E explicar também como isso pode ser previsto com muita segurança, com ajuda da neurociência.
Nota do blog:
Até o momento, o artigo foi publicado na íntegra pelo site PSYaRxIV e pode ser acessado aqui. Eu achei pertinente comentá-lo. O comentário está na seção de posts do blog e pode ser acessado aqui.
A seguir apresento apenas alguns trechos do artigo original para o leitor do comentário se situar no assunto. Vale a pena. Peço desculpas aos autores se no ensejo inadvertidamente provoquei algum estrago.
Resumo
“Experiências de isolamento social, exclusão ou perda afetiva são geralmente consideradas algumas das coisas mais ‘dolorosas’ que as pessoas enfrentam. As ameaças de desconexão social são processadas por algumas das mesmas estruturas neurais que processam ameaças básicas à sobrevivência. A falta de conexão social pode ser ‘dolorosa’ devido a uma sobreposição no circuito neural responsável pela dor física e emocional relacionada aos sentimentos de rejeição social. Na verdade, muitos de nós não medimos esforços para evitar situações que podem gerar essas experiências. Por isso, este trabalho foca em momentos de pandemia, a somatização citada acima busca a interconexão e/ou interdependência entre os sistemas neurais relacionados aos processos emocionais e cognitivos, para que a pessoa envolvida naquele ambiente social aversivo tome consciência de si mesma, dos demais , e da situação ameaçadora vivida, para evitar os efeitos psicológicos e neuropsiquiátricos diários.”
“O isolamento social causado pela quarentena relacionada à Covid-19 pode causar grave transtorno de estresse pós-traumático, não só por medo de pandemia, mas também por desemprego, perda de pais sem luto, e pelos riscos de experiências familiares traumáticas, como aquelas que se referem ao isolamento como a um potencial agressor no mesmo ambiente, coexistindo diariamente com uma situação ameaçadora impossível de escapar, da mesma.”
“Estudos sugerem que as relações sociais têm um papel importante na dor. Indivíduos com maior tamanho de grupo social autorrelatado mostraram maior tolerância à dor.15Johnson, K. V. A., & Dunbar, R. I. M. (2016). Pain tolerance predicts human social network size. Scientific Reports, 6(1), 1–5. [LINK] Exclusão social induzida experimentalmente e suporte social percebido respectivamente, aumentam e reduzem a gravidade da dor experimental aguda.16Brown, J. L., Sheffield, D., Leary, M. R., & Robinson, M. E. (2003). Social support and experimental pain. Psychosomatic Medicine, 65(2), 276–283. [LINK]17Eisenberger, N. I., Jarcho, J. M., Lieberman, M. D., & Naliboff, B. D. (2006). An experimental study of shared sensitivity to physical pain and social rejection. Pain, 126(1–3), 132–138. [LINK]18Master, S. L., Eisenberger, N. I., Taylor, S. E., Naliboff, B. D., Shirinyan,D., & Lieberman, M. D. (2009). A picture’s worth: Partner photographs reduce experimentally induced pain. Psychological Science, 20(11), 1316–1318. [LINK] Inversamente, relacionamentos ruins e isolamento autoimposto por longo tempo têm sido correlacionados com dor crônica.”19Smith, J. A., & Osborn, M. (2007). Pain as an assault on the self: An interpretative phenomenological analysis of the psychological impact of chronic benign low back pain. Psychology and Health, 22(5), 517–534. [LINK]20Snelling, J. (1994). The effect of chronic pain on the family unit. Journal of Advanced Nursing, 19(3), 543–551. [LINK]
“Nas últimas décadas, a influência da ansiedade na percepção da dor tem sido amplamente investigada. A ansiedade é aceita como um dos fatores psicológicos determinantes na experiência subjetiva da dor.21Tang, J., & Gibson, S. J. (2005). A psychophysical evaluation of the relationship between trait anxiety, pain perception, and induced state anxiety. Journal of Pain, 6(9), 612–619. [LINK] Asmundson e colaboradores22Asmundson, G. J. G., Jacobson, S. J., Allerdings, M. D., & Norton, G. R. (1996). Social phobia in disabled workers with chronic musculoskeletal pain. Behaviour Research and Therapy, 34(11–12), 939–943. [LINK] apontaram a existência de uma ligação entre transtorno de ansiedade e dor, demonstrando que a prevalência da ansiedade é maior em pessoas que sofrem de doenças crônicas. Além disso, dor crônica e transtornos de ansiedade coexistem em 45% dos pacientes com dor crônica selecionados após uma triagem para transtorno de ansiedade.”23Asmundson,G.J., Katz,J.(2009).Understanding the co-occurrence of anxiety disorders and chronic pain: state-of-the-art. Depression and Anxiety. 26, 888-901. doi: 10.1002/da.20600.
“As experiências afetivas de conexões relacionadas à dor atingem as estruturas do cérebro supraespinhal através do trato paleospinotalâmico, que recruta a matéria cinza periaquedutal, o complexo amigdaloide, a área parabraquial, o hipotálamo e a ínsula.24Lumley, M. A., Cohen, J. L., Borszcz, G. S., Cano, A., Radcliffe, A. M., Porter, L. S., et al. (2011, September). Pain and emotion: A biopsychosocial review of recent research. Journal of Clinical Psychology. NIH Public Access. [LINK]25Vogt, B. A., Sikes, R. W., & Vogt, L. J. (1993). Anterior Cingulate Cortex and the Medial Pain System. In Neurobiology of Cingulate Cortex and Limbic Thalamus(pp. 313–344). Birkhäuser Boston. [LINK]26Hammond, D. (1989). New Insights Regarding Organization of Spinal Cord Pain Pathways. Physiology, 4, 98–101. doi:10.1152/physiologyonline.1989.4.3.98 As informações dessas duas vias se reúnem no ACC e no córtex insular. Assim, é a combinação de entradas nociceptivas e afetivas para essas áreas – eliciado pelo mesmo estímulo – que influencia a homeostase interoceptiva27Craig, A. D. (2003, June 1). A new view of pain as a homeostatic emotion. Trends in Neurosciences. Elsevier Ltd. [LINK] e priorização de resposta.28Lumley, M. A., Cohen, J. L., Borszcz, G. S., Cano, A., Radcliffe, A. M., Porter, L. S., et al. (2011, September). Pain and emotion: A biopsychosocial review of recent research. Journal of Clinical Psychology. NIH Public Access. [LINK]29Price, D. D. (2000a, June 9). Psychological and neural mechanisms of the affective dimension of pain. Science. Science. [LINK] Portanto, ambos os tipos de informação sobre a dor contribuem para nossa experiência subjetiva e, em última análise, para nossa resposta a ela. É a partir dessa teoria que buscamos estabelecer as ligações anatômicas entre emoções e dor.”
“… a dor emocional parece imitar certos aspectos físicos da dor em termos de atividade cerebral e percepção da dor. Por exemplo, a rejeição social provoca ativação semelhante nas mesmas áreas da dor física, e maior sensibilidade à dor física ou a dor social está associada a uma maior sensibilidade à dor física. Organização social não é uma característica exclusiva do ser humano; os laços sociais são essenciais para o bem-estar e sobrevivência de mamíferos.”30Baumeister, R. F., & Leary, M. R. (1995). The Need to Belong: Desire for Interpersonal Attachments as a Fundamental Human Motivation. Psychological Bulletin, 117(3),497–529. [LINK]
“A dor social é definida como a experiência desagradável que é associada a danos reais ou potenciais ao senso de conexão social ou de valor social que a pessoa tem; como mostrar rejeição social, exclusão, avaliação social negativa ou perda.31MacDonald, G., & Leary, M. R. (2005, March). Why does social exclusion hurt? The relationship between social and physical pain. Psychological Bulletin. Psychol Bull. [LINK] A análise de neuroimagem tem mostrado a ativação de estruturas como a parte dorsal (d) do ACC e o córtex insular anterior em indivíduos que experimentaram exclusão social.32Eisenberger, N. I. (2012a). The pain of social disconnection: Examining the shared neural underpinnings of physical and social pain. Nature Reviews Neuroscience, 13(6), 421–434. [LINK] Essas regiões são conhecidas por desempenhar um papel na experiência angustiante da dor física. Além disso, o dACC e AI podem ter um papel modulador nas ligações entre rejeição social e ambas, atividade inflamatória e depressão. Se considerarmos os componentes da dor, o sensorial-discriminativo e o afetivo-motivacional, o último está relacionado a aspectos de emoção, excitação e programação comportamental.”33Treede, R. D., Kenshalo, D. R., Gracely, R. H., & Jones, A. K. P. (1999). The cortical representation ofpain. Pain, 79(2–3), 105–111. [LINK]
“O isolamento social causa mudanças neurológicas que podem induzir sofrimento social. Embora estudos de neuroimagem mostrem a ativação das mesmas áreas em situações de dor física e social, há evidências de que essas mesmas áreas são ativadas em outras situações estressantes.34Eisenberger, N. I. (2012b). The neural bases of social pain: Evidence for shared representations with physical pain. Psychosomatic Medicine, 74(2), 126–135. [LINK]35Sturgeon, J. A., & Zautra,A. J. (2016). Social pain and physical pain: shared paths to resilience. Pain management. Future Science Group. [LINK] Assim, o papel dessas estruturas, córtex cingulado anterior e ínsula anterior, pode ser mais amplo como um sistema de alarme neural para a sobrevivência (Eisenberg 2012c).”36Eisenberger, N. I. (2012c). The neural bases of social pain: Evidence for shared representations with physical pain. Psychosomatic Medicine, 74(2), 126–135. [LINK]
“A retomada do gerenciamento clínico da dor terá que lidar com os requisitos biopsicossociais do período da pós-pandemia da Covid-19. Os profissionais de saúde terão que enfrentar o desafio de lidar com a sobreposição de dor física e emocional e o possível processo de dor catastrófica desencadeada ou agravada pela pandemia Covid-19.”
“Além dos desafios típicos do autogerenciamento de uma doença crônica, o gerenciamento de uma doença tornou-se significativamente mais complexo com a implementação do distanciamento, incluindo limitação de visitas de cuidados de saúde não essenciais. Isso gerou confusão quanto a como os pacientes com doenças crônicas devem equilibrar o manejo de sua doença e reduzir o risco de infecção. Esse processo adaptativo impacta diretamente os sintomas clínicos, especialmente o da dor (Michaud et al. 2020).37Michaud, K., Wipfler, K., Shaw, Y., Simon, T. A., Cornish, A., England, B. R., et al. (2020). Experiences of Patients With Rheumatic Diseases in the United States During Early Days of the COVID ‐19 Pandemic . ACR Open Rheumatology, 2(6), 335–343. [LINK] A exposição da população a traumas, como testemunhar e cuidar de pessoas gravemente doentes, percepção de ameaça à vida, mortalidade e luto, mortes de profissionais da saúde, pode prejudicar a saúde mental da população e, consequentemente, aumentar os riscos de desenvolver sofrimento psicológico e progressão para psicopatologia, incluindo transtorno de estresse pós-traumático.”38Neria, Y., & Sullivan, G. M. (2011, September 28). Understanding the mental health effects of indirect exposure to mass trauma through the media. JAMA -Journal of the American Medical Association. NIH Public Access. [LINK]39Schultz, C., & Engelhardt, M. (2014). Anatomy of the hippocampal formation. In The Hippocampus in Clinical Neuroscience(Vol. 34, pp.6–17). S. Karger AG. [LINK]
“Além disso, sugere-se que os pacientes com infecção suspeita ou confirmada com o SARS-CoV2 podem sentir medo e ansiedade sobre as consequências da Covid-19, incluindo morte e deficiência física grave. Além disso, o tédio, a solidão e a raiva podem ser experimentados por indivíduos em quarentena. Também é sugerido que os sintomas de ansiedade e angústia podem ser agravados nessas pessoas, sintomas que também podem ocorrer em aqueles que estão em isolamento social.40Jahanshahi, A. A., Dinani, M. M., Madavani, A. N., Li, J., & Zhang, S. X. (2020, July 1). The distress of Iranian adults during the Covid-19 pandemic –More distressed than the Chinese and with different predictors. Brain, Behavior, and Immunity. Academic Press Inc. [LINK] Estudos mostram que os indivíduos com doença grave ou múltiplas comorbidades têm níveis mais elevados de sintomas psicológicos em face dessa crise.”
“A intensidade percebida dos sintomas dolorosos é, portanto, exacerbada por sintomas de incapacidade, ansiedade, depressão, distúrbios do sono, baixa qualidade de vida e custos de saúde. Da mesma forma, o sofrimento psicológico foi identificado como uma forma potencial em que um episódio de dor influencia o desenvolvimento de sintomas incapacitantes persistentes.41Park, S. C., & Park, Y. C. (2020, February 1). Mental healthcare measures in response to the 2019 novel coronavirus outbreak in Korea. Psychiatry Investigation. Korean Neuropsychiatric Association. [LINK] Assim, os profissionais de saúde podem encontrar o desafio de lidar com a aumento dos sintomas dolorosos e a dificuldade de reduzir os níveis de incapacidade física de pacientes.”
“Há evidências crescentes de que, quando a educação em neurociência da dor é fornecida para pacientes com dor musculoesquelética crônica, disso pode resultar diminuição de dor, catastrofismo e incapacidade, e melhor desempenho físico (Puentedura e Flynn 2016; Wijma et al. 2016).42Puentedura, E. J., & Flynn, T. (2016). Combining manual therapywith pain neuroscience education in the treatment of chronic low back pain: A narrative review of the literature. Physiotherapy Theory and Practice, 32(5), 408–414. [LINK]43Wijma, A. J., van Wilgen, C. P., Meeus, M., & Nijs, J. (2016). Clinical biopsychosocial physiotherapy assessment of patients with chronic pain: The first step in pain neuroscience education. Physiotherapy Theory and Practice, 32(5), 368–384. [LINK] A educação em neurociência da dor é cada vez mais usada como parte de um tratamento fisioterapêutico em pacientes com dor crônica.”
“As consultas de atendimento primário também exigem novas abordagens. Por exemplo, muitas dessas consultas poderiam ocorrer de forma não-presencial, sem a necessidade de ver o paciente pessoalmente, com a maior parte do encontro histórico ocorrendo por telefone ou videoconferência com os membros da equipe de atendimento primário.”
“Será necessário avaliar os impactos da Covid-19 em pacientes com doenças crônicas, com base em informações multidimensionais e multiprofissionais para se ter uma maneira melhor de tomar decisões e de conduzir os processos de reabilitação.”
“A dor emocional vem do possível ‘abalo’ cognitivo que a pandemia da Covid-19 pode causar, refletindo na capacidade neuroplástica do indivíduo e, consequentemente, no seu comportamento social. Neste follow-up, a relação entre neuroplasticidade e dor emocional, no momento da pandemia da Covid-19, pode ser caracterizada pelo envolvimento da saúde em seu sentido amplo: saúde física, social e saúde mental.”