Artigos - by dorcronica.blog.br

Depressão comórbida e sintomas de ansiedade em pacientes com dor crônica e seu impacto na qualidade de vida relacionada à saúde

Depressão e ansiedade em pacientes com dor crônica

Depressão na Bahia de Todos os Santos já é algo que, por si só, chama a atenção. Porém, a pesquisa que este artigo apresenta chama a atenção pela elegância com que foi planejada e feita. Uma aula para quem quiser viabilizar uma tese de doutorado ou um bom artigo numa pesquisa de campo usando dados de pacientes de um hospital universitário. Ah, e os resultados também interessam. Afinal, distúrbios mentais estão associados a dor crônica? Veja aqui o que os baianos têm a dizer.

Autores: Martha MC Castro1; Lucas C. Quarantini2; Carla Daltro3; Milke Pires-Caldas4Karestan C. Koenen5Durval Campos Kraychete6Irismar R. de Oliveira7

RESUMO:

  • JUSTIFICATIVA: A dor é uma experiência sensorial e emocional desagradável. Tanto a dor crônica como a depressão resultam em incapacidade substancial, reduziu a qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS) e aumentou os custos e a utilização de serviços de saúde.
  • OBJETIVOS: Avaliar a força da associação entre sintomas depressivos e de ansiedade e dor crônica e investigar o impacto desses sintomas na qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS) em indivíduos com dor crônica.
  • MÉTODOS: A dor foi avaliada por meio de uma Escala Visual Analógica (EVA). Os sintomas depressivos e de ansiedade foram avaliados pela escala Hospital Anxiety and Depression (HAD). A qualidade de vida foi avaliada por meio do SF-36.
  • RESULTADOS: Foram estudados 400 pacientes, com idade média de 45,6 ± 11,4 anos e 82,8% do sexo feminino. Segundo a HAD, 70% apresentavam sintomas de ansiedade e 60% de depressão. O SF-36 apresentou escores médios < 50% para todos os domínios. Pacientes com dor intensa/extrema (70,4%) apresentaram maior frequência de ansiedade do que aqueles com dor selvagem/moderada (59,5%). Este foi estatisticamente significativo (p = 0,027). No entanto, a frequência de depressão não atingiu significância estatística quando os dois grupos foram comparados (p = 0,109).
  • DISCUSSÃO: Sintomas depressivos/de ansiedade e dor juntos apresentam piores resultados clínicos do que cada condição isolada.

Introdução

A dor é uma experiência sensorial e emocional desagradável associada a dano tecidual real ou potencial8 e é o sintoma somático mais comum em pacientes ambulatoriais médicos9. A dor crônica tem papel significativo na incapacidade, impossibilitando o indivíduo de realizar atividades físicas10. Além disso, essa condição geralmente é comórbida com distúrbios psiquiátricos, principalmente depressão maior1112. Ambas as condições são frequentemente tratadas de maneira inadequada e resultam em incapacidade substancial, redução da qualidade de vida relacionada à saúde (QVRS) e aumento dos custos e utilização dos cuidados de saúde.1314

Estudos anteriores sobre a relação entre dor crônica e distúrbios psiquiátricos foram amplamente realizados na Europa Ocidental e na América do Norte. Dada a sugestão de que a associação entre sintomas somáticos, incluindo condições de dor e doença psiquiátrica, possa ser influenciada por fatores culturais15, no entanto, a generalização desses achados para populações não ocidentais é uma questão importante16. Recentemente, um estudo mundial que examinou uma amostra populacional de 18 países desenvolvidos e em desenvolvimento examinou cuidadosamente a relação entre dor crônica e transtornos mentais1718. Infelizmente, o Brasil não foi incluído neste importante estudo. Assim, muitas questões relacionadas às características clínicas e à carga de comorbidade psiquiátrica em indivíduos com dor crônica ainda permanecem neste país. A força da relação entre dor crônica e depressão maior não é clara1920, especialmente no que diz respeito à QVRS e sintomas depressivos/ansiosos.

O objetivo deste estudo foi avaliar a força da associação entre sintomas depressivos/ansiedade e dor crônica e investigar o impacto dos sintomas depressivos/ansiedade em indivíduos com dor crônica na QVRS. Nossa hipótese foi de que pacientes depressivos/ansiosos com dor crônica apresentariam uma qualidade de vida significativamente menor quando comparados a indivíduos com dor crônica que não apresentam sintomas de depressão/ansiedade.

Métodos

Entre fevereiro de 2003 e novembro de 2006, 400 adultos consecutivos que procuravam tratamento na Clínica da Dor do Hospital Universitário da Universidade Federal da Bahia, Brasil, foram incluídos no estudo. Foram avaliadas as seguintes variáveis: idade, sexo, estado civil, escolaridade, religião, ocupação atual, duração, frequência e intensidade da dor, diagnóstico médico da dor e tempo e resposta ao tratamento. A idade foi dividida em dois grupos de acordo com a mediana, a fim de investigar a influência da idade na qualidade de vida.

A intensidade da dor foi mensurada por meio de uma Escala Visual Analógica (EVA), na qual a intensidade da dor foi classificada de 0 a 10, da seguinte forma: 0-1 = sem dor; 2-3 = dor leve; 4-5 = dor moderada; 6-7 = dor intensa e 8-10 = dor extrema.21

Os sintomas depressivos e de ansiedade foram avaliados pela escala Hospital Anxiety and Depression (HAD, versão brasileira)2223. A escala HAD é um questionário com as dimensões ansiedade e depressão contendo 14 itens, 7 referentes à ansiedade e 7 à depressão, com um ponto de corte de 8 para ansiedade e 9 para depressão. Todos os itens se referem exclusivamente ao estado emocional e não refletem sintomas somáticos.

A qualidade de vida relacionada à saúde foi avaliada através da aplicação do Medical Outcome Study Short-Form 36 Health Survey (SF-36) traduzido e validado para o português. É um instrumento genérico composto por 36 itens que avaliam os seguintes domínios: funcionamento físico (capacidade de cuidar de si mesmo e realizar atividades diárias de rotina); limitações de função devido à saúde física (o impacto da saúde física na realização de atividades); dor corporal (nível de dor experimentada ao realizar atividades diárias de rotina); percepções gerais de saúde (como o indivíduo percebe sua saúde); vitalidade (energia e fadiga); funcionamento social (impacto das condições físicas em sua vida social); limitações de papéis devido a problemas emocionais (até que ponto os problemas emocionais interferem nas atividades diárias de rotina); e saúde mental (efeito do humor em sua vida). Para analisar os oito domínios da escala, é utilizada uma pontuação que varia de 0 (mais afetado) a 100 (não afetado).24

Todos os pacientes assinaram o termo de consentimento informado antes da admissão no estudo. O estudo foi aprovado pelo Conselho de Revisão Institucional local.

Análise estatística

O programa Statistical Package for the Social Sciences (SPSS) foi utilizado para construir o banco de dados e realizar os cálculos estatísticos.

As variáveis ​​contínuas foram apresentadas como média ± desvio padrão (DP) e as categóricas como proporções (frequência relativa).

O teste t de Student ou Mann-Whitney foi utilizado para comparar as variáveis ​​entre os dois grupos e o teste do qui-quadrado para comparar proporções. A significância foi estabelecida em P <0,05.

Resultados

Quatrocentos pacientes foram incluídos neste estudo, 331 dos quais eram do sexo feminino (82,8%) e 69 (17,2%) do sexo masculino. A idade média dos pacientes foi de 45,6 ± 11,4 anos. A maioria dos pacientes era casada ou tinha parceiros estáveis, se considerava católica e cursara o ensino médio. Apenas 32,3% dos pacientes deste estudo estavam empregados no período avaliado (Tabela 1).

Tabela 1. Características gerais de 400 pacientes atendidos na Clínica de Dor do Hospital Universitário entre 2003 e 2006.

Variável Resultados (Média + DP)
Idade (anos) 45.6 + 11.4
Gênero:
Feminino 331 (82.8%)
Masculino 69 (17.2%)
Estado civil:
Solteiro 128 (32.1%)
Casado 195 (48.5%)
Separado / divorciado 50 (12.6%)
Viúvo 27 (6.8%)
Educação:
Analfabeto 17 (4.3%)
Escola Primária 71 (18.1%)
Ensino Fundamental 90 (22.3%)
Ensino Secundário (Colegial) 190 (47.3%)
Universidade 32 (8%)
Religião:
Sem religião 27 (6.8%)
Católico 221 (55.1%)
Protestante / evangélico 107 (26.8%)
Espírita 36 (9%)
Outros 9 (2.3%)
Ocupação:
Desempregado / sem ocupação 57 (14.3%)
Aposentado 60 (15%)
Em licença médica 154 (38.4%)
Empregado 129 (32.3%)

Com relação à classificação da dor, 70,8% dos pacientes relataram dor que variava em magnitude, mas ocorria diariamente; 32,0% classificaram sua dor como intensa e 48,5% estavam em tratamento nesse centro há mais de três meses, o alívio moderado de 38% da dor.

Quando analisados ​​os resultados da escala HAD para avaliação de ansiedade e depressão, verificou-se que 21% não apresentavam sintomas de ansiedade ou depressão, enquanto 7% eram apenas deprimidos e 18% apenas ansiosos. Por outro lado, 54,0% apresentaram escores superiores às normas estabelecidas para ansiedade e depressão. A avaliação do SF-36 mostrou que os escores médios dos pacientes deste estudo foram de 50% ou menos para todos os domínios da escala (Tabela 2).

Tabela 2. Resultados da escala SF-36 dos pacientes.

Escala SF-36 Média + DP
Função física 36.2 + 22.6
Limitações de função devido à saúde física 17.8 + 27.9
Dor Corporal 31.8 + 17.4
Percepções gerais de saúde 44.4 + 21.8
Vitalidade 41.3 + 22.6
Função Social 49.5 + 27.9
Limitações de função devido a problemas emocionais 30.0 + 36.6
Saúde Mental 48.7 + 23.2

Durante a análise, a idade foi dicotomizada de acordo com a mediana para <45 anos (n = 185) e ≥ 45 anos (n = 215). Não foram encontradas diferenças estatisticamente significativas entre esses dois grupos etários em relação aos escores de qualquer um dos domínios do SF-36. Da mesma forma, quando uma análise univariada desses domínios foi realizada em relação ao sexo e estado civil, não foram encontradas diferenças estatisticamente significantes entre os dois grupos.

Para comparar os domínios da escala SF-36, construímos uma tabela que mostra o primeiro quartil (25%), o segundo quartil ou mediana (50%) e o terceiro quartil (75%) (Tabela 3).

Tabela 3. Domínios da escala SF-36 e sintomas de ansiedade e depressão de acordo com a intensidade da dor.

Variáveis Intensidade da dor P
Leve a Moderada Intensa e Extrema
Sintomas de ansiedade 88 (59.5%) 171 (70.4%) 0.027
Sintomas de depressão 65 (43.9%) 127 (52.3%) 0.109
Domínios da escala SF-36:
Função física 40.4 + 23.6 32.8 + 20.7 0.003
Limitações de função devido à saúde física 22.7 + 32.0 15.0 + 24.8 0.027
Dor Corporal 37.2 + 17.5 28.0 + 15.7 < 0.001
Percepções gerais de saúde 50.8 + 20.8 39.7 + 21.0 < 0.001
Vitalidade 45.8 + 22.1 38.0 + 22.6 < 0.001
Função Social 55.3 + 28.4 46.0 + 27.1 0.001
Limitações de função devido a problemas emocionais 34.1 + 38.4 27.1 + 34.7 0.097
Saúde Mental 54.6 + 23.5 45.1 + 22.2 < 0.001

Quando os resultados da escala de QV do SF-36 foram comparados de acordo com os escores da HAD, observou-se que pacientes sem ansiedade e depressão apresentaram maior qualidade de vida quando comparados com aqueles com ansiedade e/ou depressão e essa diferença foi estatisticamente significante (Tabela 4).

Tabela 4. Domínios da escala SF-36 de acordo com os sintomas de ansiedade e depressão.

Domínios da Escala SF-36 Sem ansiedade e depressão Com sintomas de ansiedade e depressão P
Função física 44.3 + 24.8 29.6 + 18.3 p < 0.001
Limitações de função devido à saúde física 25.4 + 33.9 12.7 + 23.5 p = 0.001
Dor Corporal 36.7 + 17.0 26.8 + 16.1 p < 0.001
Percepções gerais de saúde 55.7 + 21.9 36.6 + 18.7 p < 0.001
Vitalidade 54.8 + 20.9 30.2 + 19.7 p < 0.001
Função Social 64.2 + 28.9 36.6 + 22.5 p < 0.001
Limitações de função devido a problemas emocionais 45.7 + 40.6 13.8 + 25.7 p < 0.001
Saúde Mental 65.7 + 20.8 34.6 + 17.4 p < 0.001

Discussão

Nosso estudo teve dois objetivos: 1) examinar a prevalência e a força da associação entre sintomas depressivos/ansiedade e dor crônica e 2) descrever a carga clínica de depressão/ansiedade comórbida e dor crônica. Em relação ao objetivo 1, encontramos evidências de alta prevalência de depressão/ansiedade. Relacionadas ao objetivo 2, as evidências mostram que a carga clínica associada à depressão, ansiedade e dor crônica é significativamente maior do que naqueles com dor crônica. Especificamente, os entrevistados com depressão e ansiedade apresentaram QVRS significativamente menor do que o outro grupo sem esses sintomas.

A prevalência de sintomas depressivos em nossa amostra foi significativamente maior e semelhante ao encontrado em outras amostras clínicas que variaram de 30% a 60%25. A mesma comparação ocorreu com os sintomas de ansiedade. Esses dados confirmam observações anteriores nas quais os sintomas depressivos e de ansiedade coexistem frequentemente em pacientes com dor crônica2627. Este estudo também revelou que a dor era mais provável de ser incapacitante quando os sintomas depressivos/de ansiedade estavam presentes. Entre os que relataram dor crônica comórbida com depressão e ansiedade, eles apresentaram escores mais graves em todos os itens da QV do SF-36, particularmente aqueles relacionados a limitações físicas e emocionais. Esses achados na QVRS são consistentes com os de outros que relataram decréscimos significativos na qualidade de vida associados a transtornos depressivos28. Depressão e sintomas depressivos têm sido associados a um número impressionantemente grande de maus resultados de dor e pior prognóstico; pacientes com dor e depressão comórbida experimentaram dor mais intensa, maior duração da dor, mais amplificação dos sintomas de dor e mais queixas de dor29. Além disso, as limitações funcionais (restrições de atividade) e a incapacidade resultante, como dias na cama enquanto doente e hospitalizações, aumentaram em pacientes com dor e depressão. Da mesma forma, depressão e dor produziram prejuízos aditivos no funcionamento social, maior taxa de desemprego3031 diminuiu a satisfação do paciente.

A ligação entre dor crônica e seus componentes afetivos (isto é, depressão e ansiedade) é conhecida desde os tempos dos gregos antigos32. Mecanismos psicológicos têm sido sugeridos para explorar a relação entre essas condições clínicas. Estudos mostraram que o medo de exacerbar a dor por movimento e dor catastrofizante prediz dor e incapacidade mais severas em pacientes com dor lombar crônica. Assim, a catastrofização pode mediar a relação entre as três condições e levar ao aumento dos sintomas físicos e mentais. Como resultado, a percepção de dor das pessoas pode ser ampliada no contexto de depressão e ansiedade.3334

Por um lado, as explicações biológicas enfatizam a neurobiologia comum e os mecanismos neuroanatômicos dessas condições. O desenvolvimento da dor, depressão e ansiedade compartilham a participação de neurotransmissores, como serotonina, noradrenalina, ácido gama-amino-butírico, glutamato, adenosina, canabinóides e muitos outros neuropeptídeos. Estudos de ressonância magnética funcional (RM) de indivíduos com dor crônica e depressão (ou ansiedade) mostraram áreas comuns de ativação cerebral35. Mecanismos adicionais que podem, pelo menos em parte, elucidar a ligação entre dor, depressão e ansiedade estão relacionados à ativação do sistema nervoso simpático, envolvimento do eixo hipotálamo-hipófise e regulação negativa dos receptores benzodiazepínicos no córtex frontal.36

Existem várias limitações a serem consideradas na interpretação desses achados. Primeiro, o desenho transversal exclui a oportunidade de examinar as relações cronológicas entre depressão, ansiedade e dor. Segundo, o estudo foi realizado em um hospital de ensino, onde, supostamente, são tratados casos mais graves; portanto, os resultados podem não ser generalizáveis ​​para outros locais de atendimento. Terceiro, usamos exclusivamente medidas de autorrelato em oposição à avaliação administrada por entrevista e os resultados foram comparados com outros estudos que avaliaram a depressão maior. Por fim, como os pacientes com dor crônica frequentemente relatam alterações na concentração, energia e sono, questões foram levantadas relacionadas à probabilidade de falso-positivos na avaliação da prevalência de depressão maior nessa população.37

Conclusão

A combinação de depressão, ansiedade e dor está associada a piores resultados clínicos do que cada condição sozinha. Mais pesquisas são necessárias para determinar se o tratamento da dor ajuda os sintomas depressivos dos pacientes e, da mesma forma, se o alívio dos sintomas depressivos melhora a dor e sua morbidade relacionada. Essas questões abrem um caminho para futuras investigações relacionadas ao papel da abordagem da psicoterapia em pacientes com dor crônica e abordagens farmacológicas combinadas.

Cadastre-se E receba nosso newsletter

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

CONHEÇA FIBRODOR, UM SITE EXCLUSIVO SOBRE FIBROMIALGIA
CLIQUE AQUI