Num post anterior eu me referi a pensamentos sobre a dor como principais impulsionadores da mesma. O teor desses pensamentos, eu escrevi, é quase sempre negativo – “desadaptativo”, conforme os eruditos, ou simplesmente “tóxicos”, na minha opinião. O meu propósito agora é comentar as duas principais maneiras em que esses pensamentos se expressam: cognições e crenças.
“Se você está angustiado por qualquer coisa externa, a dor não se deve à coisa em si, mas à sua estimativa dela; e isso você tem o poder de revogar a qualquer momento.”
Mas antes, porque focar na toxicidade atribuída ao pensamento sobre a dor, e não nas coisas boas a ela associadas, como o seu caráter protetivo?
Porque em se tratando de dor crônica, a dor não é mais protetiva. Ela existe apenas para atazanar a vida do portador. E porque cultivar pensamentos tóxicos sobre a dor é muito mais comum e (quase) natural no ser humano, do que pensar o contrário.
Nada surpreendente, aliás.
De cara, o nosso cérebro ainda é um tanto pré-histórico. Ele ainda vive hipervigiando ameaças do ambiente – cataclismos e pterossauros, ora substituídos por impostos e assaltantes – e o ranço disso é a presença de um impulso “lute ou fuja”, ainda latente em nós. O fato é que ainda estamos programados para sermos hipersensíveis ao medo, e o medo é que gera e perpetua a dor.
Depois, a dor crônica pode enlouquecer o portador ou portadora. A possibilidade de a dor piorar, o pensar constantemente nela, a perda de esperança de se curar, e com frequência, tudo isso junto, derrubam qualquer um. Não mata, mas pode incapacitar.
Essas duas razões justificam a dor e suas circunstâncias evocarem em nossa mente pensamentos predominantemente negativos. Ou desadaptativos porque atrapalham qualquer tentativa de se conviver com a dor. Ou tóxicos, porque nos fazem raciocinar frequentemente “no vermelho”, pensando sempre no pior… o que, convenhamos, ajuda nada e nos afunda ainda mais.
Enfim, cada vez que pensamos na nossa dor e no que ocorre conosco relacionado a isso, é como se deflagrássemos uma espécie de campanha de ódio contra nós mesmos.
Dito isso, vamos às fake news veiculadas na tal campanha; especificamente, as cognições e crenças sobre a dor. (Para encurtar espaço, doravante, ao falar em “dor”, subentenda-se dor crônica e os sintomas que a acompanham, como fadiga, sono ruim, humor prejudicado etc.)
Efeitos de Cognições e Crenças
Crenças e cognições de dor desempenham um papel importante no ajuste à dor. Certas cognições negativas e crenças negativas sobre a dor estão relacionadas a um pior funcionamento psicossocial e menor nível de atividade entre os pacientes com dor.
De outro lado, mudanças nas crenças negativas relacionadas à dor estão correlacionadas com a melhora nos sintomas depressivos e no funcionamento físico, bem como com a diminuição das visitas médicas relacionadas à dor.
Dor e Cognições
A dor é um fenômeno perceptivo subjetivo envolvendo o processamento cognitivo, e não um fenômeno puramente sensorial. Ora, cognitivo tem a ver cognição.
E o que é isso?
- A cognição é como a mente percebe, lembra e pensa. Ela é composta por elementos críticos, como atenção, percepção, memória, habilidades motoras, funcionamento executivo e habilidades verbais e de linguagem.1[Internet] Link.springer.com. Acesse o link.
- A cognição envolve a aquisição, processamento, armazenamento e recuperação de informações pelo cérebro.2[Internet] Onlinelibrary.wiley.com. Acesse o link.
- A cognição é um componente vital da percepção subjetiva da dor que requer avaliação cognitiva, aprendizado, recordação de experiências passadas e tomada de decisão ativa.3[PDF] Researchgate.net. Acesse o link.
As cognições têm sido definidas como autoafirmações que são “respostas específicas a um evento ambiental”.4[Internet] Link.springer.com. Acesse o link. Cognições “tóxicas” são, por exemplo: “A dor crônica se resolve com medicamentos”; “Um surto de dor não tem como prevenir”; “Ninguém consegue explicar a dor. Nem a própria, nem a do outro.”
Cognições negativas sobre a dor têm demonstrado repetidamente prever dor, incapacidade e angústia entre pacientes com dor crônica.5[Internet] Psycnet.apa.org. Acesse o link. Além disso, essas cognições também foram associadas ao maior uso de recursos de saúde e maior uso de analgésicos. Por exemplo: “Eu já consultei ‘n’ médicos e nada”; “Sempre temos a cirurgia para reparar qualquer dano no organismo”; “No meu caso, remédios já pararam a dor”.
Dor e Crenças
Uma crença é uma ideia que consideramos correta. É uma aceitação de que algo existe ou é verdadeiro, haja ou não prova ou evidência. Dito de forma mais erudita, crenças são noções preexistentes sobre a natureza da realidade que moldam nossas percepções de nós mesmos e de nosso ambiente.6[Internet] Books.google.com.br. Acesse o link. As crenças de dor ajudam a obter uma compreensão estável dos eventos passados, presentes ou futuros. Por exemplo: “A medicina não resolve a dor persistente porque os médicos só querem ganhar dinheiro”. “Eu nunca vou melhorar porque o meu problema de saúde é complexo demais.”
Contribuem à formação das crenças sobre a dor em geral ou crônica:7[Internet] Sciencedirect.com. Acesse o link.
- Nossas experiências anteriores diretas (sentidas) relacionadas à dor e sintomas coadjuvantes.
- Observações de outras pessoas com sintomas semelhantes.
- Informações que aprendemos sobre à dor de fontes como a mídia e médicos.
- Nossa própria natureza, personalidade, maneira de ser etc.
Uma meta-análise de 11 pesquisas mostrou diferenças nas estratégias de enfrentamento da dor crônica, percepções da doença, autoeficácia, crenças de evitação do medo, e atitudes perante a dor em diferentes populações devido a discrepâncias raciais, étnicas e culturais.8[PDF] Painphysicianjournal.com. Acesse o link. Em geral, quanto mais pessimistas as cognições e crenças sobre a dor, pior o comportamento dessas variáveis.
Em suma…
Uma redução das respostas desadaptativas à dor é crucial no ajuste à dor crônica. A única forma de se conseguir isso é eliminando os pensamentos tóxicos sobre a dor – leia-se cognições e crenças negativas ou equivocadas – antes que eles contaminem mente e corpo em definitivo, tornando a possibilidade de conseguir alívio e qualidade de vida, muito mais remota.