Conceitualmente, a prática clínica da medicina parece estar se movimentando na direção do paciente. “Medicina centrada no paciente”, ou termos parecidos, hoje figuram nos sites dos hospitais de ponta do Ocidente e são o discurso preferido dos cientistas e acadêmicos que publicam sobre a dor humana. Não deixa de ser irônico que depois de vários séculos de prática médica convencional, essa ênfase tenha se tornado necessária, profissionalmente – e convenhamos, também comercialmente. O artigo a seguir honra essa postura, em todo caso. Trata-se do relato de uma paciente sobre a sua saga dolorosa. Ela não é cientista, médica ou ensina numa faculdade de medicina, também não é jornalista especialista em temas de saúde. Ela é, enfim, uma paciente que resolveu contar a sua história convivendo com dor.
Nota do blog:
O artigo integra uma coletânea de nome sugestivo: “Os Significados da Dor”, publicada por uma editora de prestígio. Eu o escolhi para figurar ao lado de outros artigos seminais, na seção Clássicos da Dor, do blog.
Duas razões para isso.
A primeira é pessoal. O que a paciente descreve, eu também vivenciei. A perplexidade inicial, ao vislumbrar que uma dor casual poderia migrar para algo muito mais grave e duradouro. O desequilíbrio físico e mental, e o subsequente impacto profissional e familiar. A via crucis consultando inúmeros médicos que, inadvertidamente, se não resolviam, complicavam. O desamparo sentido ao se aperceber da absoluta falta de opções externas e a conclusão implacável: você está pela sua conta. Ou você inventa uma saída para si próprio, ou afunda – levando consigo outros espectadores inocentes, de roldão. Como sair dessa? As poucas vezes que falo sobre isso, ninguém acredita, claro. Deixemos, então, a autora do artigo, responder a essa pergunta.
A segunda razão resulta de uma constatação surpreendente – surpreendente para um leigo como eu, ao menos: a dor não é ensinada em faculdades de medicina. No Ocidente e no Brasil também. O papel do artigo, se lido por um aluno de uma faculdade dessa natureza, é levar à ele ou ela o sentimento de quem quer ser curado, ou ao menos aliviado, mas também ser visto, ouvido e acolhido afetivamente e não apenas medicamente, no sentido estrito do termo.
Narrativas de primeira pessoa da experiência vivida de dor e os significados dessa experiência, são incomuns, especialmente de pessoas que também não são médicos clínicos ou pesquisadores. No entanto, essas narrativas podem ser particularmente úteis para a compreensão da dor.
Relatos em primeira pessoa, histórias de dor, podem fornecer uma visão única sobre a experiência vivida de dor, como os indivíduos a entendem, como chegam nesses significados e como esses significados podem mudar com o tempo. Tais narrativas podem levar à novas áreas de investigação e exploração de novos caminhos de tratamento possíveis. Este capítulo fornece tal narrativa, oferecendo um vislumbre da vida de uma pessoa com experiência da dor e seus significados.
O artigo é uma prova de como nossas narrativas individuais, nossas histórias, ajudam-nos a dar sentido às nossas experiências, incluindo a dor. Demonstra como nossas narrativas podem mudar ao longo do tempo à medida que novas informações e entendimentos levam para novos significados, e como essas narrativas e significados em mudança podem fazer parte de um processo terapêutico que pode levar até melhores resultados para pacientes e médicos.
Implicações clínicas: Este capítulo fornece um relato em primeira pessoa da experiência vivida de dor e recuperação. Ele explora os significados da dor, como eles chegaram a ser, e como esses significados mudam ao longo do tempo, desde o início precoce da dor através do agravamento da dor inexplicada até a recuperação da dor.
1. Introdução
Quais são os significados da dor? É uma pergunta que vem sendo feita por pesquisadores e clínicos, filósofos e poetas, durante séculos. Uma pergunta que sem dúvida assombra muitas das milhões de pessoas que vivem com dor. É uma pergunta incrivelmente difícil de responder. Os significados da dor são profundamente pessoais, mas também compartilhado. Eles mudam com o tempo, dentro dos indivíduos e dentro das culturas1Bourke J. The story of pain: from prayer to painkillers. Oxford: Oxford University Press; 2014. 396 p.. Assim como os significados da dor estão sempre mudando, a experiência da dor também está sempre mudando. Tem um caráter diferente em momentos e contextos diferentes, mas também permanece o mesmo, um dos muitos paradoxos da dor2Leder D. The experiential paradoxes of pain. J Med Philos. 2016;41(5):444–60..
A dor certamente não é apenas uma sensação, não é apenas um sintoma, nenhuma “coisa” a ser objetivada3Morris DB. Narrative and pain: toward an integrative approach. In: Moore RJ, editor. Handbook of pain and palliative care. New York: Springer; 2013. p. 733–51.. A dor é vivida ao invés de conhecida, experimentada ao invés de sentida ou pensada. A gente sente dor, se apropriando dela de maneiras únicas. Inversamente, a dor também se apodera de nós. Isso perturba nossas vidas4Bunzli S, Smith A, Schütze R, O’Sullivan P. The lived experience of pain-related fear in people with chronic low back pain. In: van Rysewyk S, editor. Meanings of pain. Cham: Springer; 2016. p. 227–50., desestabiliza nossos mundos5Leder D. The experiential paradoxes of pain. J Med Philos. 2016;41(5):444–60., ameaça nossas identidades, nossos futuros… nossa própria existência6Cassel EJ. The nature of suffering and the goals of medicine. N Engl J Med. 1982;306(11):639–45.7Smith JA, Osborn M. Pain as an assault on the self: an interpretative phenomenological analysis of the psychological impact of chronic benign low back pain. Psychol Health. 2007;22(5):517–34.8Svenaeus F. The phenomenology of chronic pain: embodiment and alienation. Cont Philos Rev. 2015;48:107–22.. Dor é o desfazer do mundo9Scarry E. The body in pain: the making and the unmaking of the world. New York: Oxford University Press; 1985. 400 p..
Este capítulo reflete o que minha dor significou para mim ao longo dos anos. Desde os primeiros dias, quando senti pela primeira vez uma pontada no quadril ao pisar, até o agravamento contínuo da dor que ocorreu inesperadamente, e daí para a busca de cuidados e tratamentos falhos, e um eventual caminho para a recuperação. É uma história de escuridão e desespero, de não ser compreendida e não compreender, bem como de luz e esperança, conexão e dando sentido para as coisas.
Para ser claro, quando digo “minha dor”, quero dizer muito especificamente a dor que senti em meu quadril direito por muitos anos, não as muitas dores que vieram antes, as dores que vieram durante, ou as dores que vieram desde então. Eu nunca me referi à outra dor que eu tivesse/tenho experimentado como “minha dor”. Isso por si só é interessante. Eu não sei exatamente quando tornou-se “minha dor”. Eu suspeito que foi quando não se resolveu como todas as outras dores, quando se tornou crônica. Não houve demarcação distinta entre dor aguda e dor crônica, no entanto. Era a mesma dor, apenas continuando por mais tempo do que deveria ser10Smith JA, Osborn M. Pain as an assault on the self: an interpretative phenomenological analysis of the psychological impact of chronic benign low back pain. Psychol Health. 2007;22(5):517–34.. Essa dor, minha dor, era diferente.
Eu não poderia explorar o significado disso sem ajuda. Existem referências e citações ao longo deste capítulo de pesquisadores, clínicos, escritores e colegas que viveram com dor, cujas palavras e obras me ajudaram a dar voz ao que muitas vezes foi inexprimível.
2. Minha história com a dor
Uma pontada no quadril. Apenas uma pontada. Mal sabia eu que ela me levaria para um caminho contínuo, de agravamento da dor que não fazia sentido. Que esta pequena pontada levaria a um espiral descendente em um abismo escuro de desespero, desesperança e perda. De dor e sofrimento, de isolamento e afastamento de pessoas, lugares e experiências que importavam para mim. Isso me fez eu.
A dor acabou levando à minha aposentadoria médica. Com a perda da minha identidade, eu também perdi meu propósito e a minha autoestima, minha maneira de se comportar no mundo e de me relacionar com ele. Perdi meus papéis sociais, meus hobbies, minhas atividades significativas. Eu não era mais uma corredora, uma levantadora de peso, uma médica, uma atleta. Não era mais eu. O mundo desapareceu, o meu horizonte de significados diminuiu até o nada, mas a dor permaneceu11Svenaeus F. The phenomenology of chronic pain: embodiment and alienation. Cont Philos Rev. 2015;48:107–22. p. 116. A dor se tornou tudo. Eu me tornei dor.
Essa história, minha história, não se encontra em meu prontuário. Quando eu olho através dos meus anos de papelada, relatórios de vários médicos, clínicos e reajustes, minha experiência está longe de ser encontrada. Em seu lugar estão listas de sintomas e limitações, iterações de uma história de lesão de quadril, miríade (e às vezes conflitante) rótulos e diagnósticos, e uma ladainha de tratamentos fracassados. Minha dor não está em lugar nenhum aqui. Minhas perdas, minha dor. Meu sofrimento foi atenuado ou desapareceu completamente.
Meus registros médicos dizem coisas como “mulher magra agradável, ainda sente desconforto ao sentar”. Não dizem “ser humano angustiado e preocupado que não foi capaz de sentar-se por mais de 2 anos, o que alterou totalmente sua vida e sua pessoa.” Não sentar significava não dirigir um carro, não encontrar amigos para um café ou jantar fora, sem socialização ou visitar a família, sem idas ao supermercado, sem assistir a um filme no sofá com meu marido. Sem trabalho. Sem brincadeira. Sem vida.
Está anotado nas páginas do meu prontuário médico que fui forçada a me aposentar da minha carreira, mas não há notas sobre como a aposentadoria médica significava perder a identidade que me definiu. Com isso perdi meu senso de valor e propósito. Perdi meus amigos, minha segurança financeira e meu futuro. Eu perdi também uma quantidade drástica de peso e não era mais reconhecível para mim, minha família, meus amigos. Eu não estava “agradavelmente magra”, eu era terrivelmente magra. Pessoas que treinei e trabalhei ao lado por anos ficaram chocadas quando me viram, elas pensaram que eu estava morrendo. O choque delas, o choque de toda essa experiência para mim, não está na minha papelada. O que a dor significava para mim, o que significava para a minha vida, para o meu futuro, não estava documentado.
Meu histórico médico conta a história de um quadril dolorido e problemático que não funcionou pelas regras biomédicas. Um quadril que não respondeu aos tratamentos conforme o esperado. E só conta a história de um quadril. Eu escrevo esta história para corrigir essa outra história.
3. Significados quando nada fez sentido
Dor como um assalto a si mesmo12Smith JA, Osborn M. Pain as an assault on the self: an interpretative phenomenological analysis of the psychological impact of chronic benign low back pain. Psychol Health. 2007;22(5):517–34.
“Toda a vida e identidade pessoal da pessoa na dor torna-se estranhamente alheio”13Svenaeus F. The phenomenology of chronic pain: embodiment and alienation. Cont Philos Rev. 2015;48:107–22. p. 121. A dor muda tudo.
Especialmente a dor que vai além de quando deveria ter terminado e para a qual não há explicação, sem razão. Isso nos muda. Nós não somos nós mesmos. De longe o aspecto mais profundo da minha experiência de dor era perder meu senso de quem eu era, meu senso de valor e propósito, de existência. Perdi minha identidade, meu lugar no mundo. A pessoa olhando para mim no espelho estava irreconhecível. Pequena, frágil, fraca. Partida. Uma impostora14Bunzli S, Smith A, Schütze R, O’Sullivan P. The lived experience of pain-related fear in people with chronic low back pain. In: van Rysewyk S, editor. Meanings of pain. Cham: Springer; 2016. p. 227–50.. Uma estranha que eu não poderia aceitar como eu mesma15Smith JA, Osborn M. Pain as an assault on the self: an interpretative phenomenological analysis of the psychological impact of chronic benign low back pain. Psychol Health. 2007;22(5):517–34..
O meu verdadeiro eu foi sequestrado por um invasor estrangeiro chamado dor. O inimigo. Meu corpo, o traidor que me traiu16Toye F, Seers K, Hannink E, Barker K. A mega-ethnography of eleven qualitative evidence syntheses exploring the experience of living with chronic non-malignant pain. BMC Med Res Methodol. 2017;17:116.. Meu quadril, minha perna inteira, não parecia mais minha. Parecia outra. Alheia17Svenaeus F. The phenomenology of chronic pain: embodiment and alienation. Cont Philos Rev. 2015;48:107–22.. Meu corpo, minha identidade, minha vida tudo se tornou tão estranho e distante. Uma paisagem que não podia navegar, para a qual não tinha mapa, nem direção, nem luz-guia para me mostrar o caminho a seguir. Eu me afastei do mundo, tornando-me desconectada de todas as coisas que importavam para mim. As pessoas, lugares e experiências que me deram um senso de propósito e valor, que fizeram minha vida significativa. Eu era como um animal ferido, retirando-me da concha do meu antigo eu para buscar algum tipo de proteção e segurança, para tentar dar sentido para tudo o que parecia tão insensível.
David Biro18Biro D. Listening to pain: finding words, compassion, and relief. New York: WW Norton; 2011. 256 p.; p. 18 escreveu que “a dor é uma experiência interna que consome tudo e que ameaça destruir tudo, menos ela mesma – família, amigos, idioma, o mundo, seus pensamentos e, em última análise, até mesmo a si mesmo.” Não é a integridade de nossos tecidos que está ameaçada pela dor, é nossa integridade como pessoas, nossa existência contínua, nosso próprio ser, que está ameaçado19Cassel EJ. The nature of suffering and the goals of medicine. N Engl J Med. 1982;306(11):639–45..
Em busca de respostas
Quando a pontada não foi embora, quando persistiu, quando transformou-se em dor contínua que nunca cessa, a necessidade de um diagnóstico, de uma resposta, tornou-se cada vez mais urgente. Essa dor que não melhora, essa ameaça para meu próprio ser e modo de vida, precisava de uma explicação. Talvez mais urgente, precisava de uma solução. Eu queria a dor, que vagamente concebi como uma espécie de lesão, algum problema mecânico, algumas partes da máquina não funcionando direito, para ser encontrado e corrigido20Loftus S. Pain and its metaphors: a dialogical approach. J Med Humanit. 2011;32:213–30.. Parecia tão simples. Só uma questão de encontrar a falha e consertá-la. É só uma questão de colocar a máquina de volta ao funcionamento.
Acontece que não era tão simples. Apesar de todos os tipos de falhas encontradas em anos, a dor nunca foi corrigida. As falhas encontradas diferiam entre profissões, clínicos e médicos, com base nas lentes particulares de educação, treinamento e preconceitos através dos quais eles viam meu quadril e minha dor. Todos os tipos de soluções foram tentadas: medicamentos, fisioterapia, injeções, cirurgia, tratamento quiroprático, acupuntura… mas falhei em todos eles.
Aqueles anos foram uma montanha-russa de alívio e grandes esperanças de quando seria dito que esse é o motivo de você ter dor e esse tratamento vai resolver isso, seguido pelas profundezas de desespero de quando tratamento após tratamento não funcionou.
A minha dor persistiu, ou pior, piorou. Apesar da minha diligência, minha adesão a todos os planos, apesar da minha motivação para me recuperar e voltar ao trabalho, voltar para a minha vida, voltar a ser eu, não consegui melhorar. E, para ter certeza, fui eu quem falhei. Nós falhamos tratamentos, eles não nos falham21Loftus S. Pain and its metaphors: a dialogical approach. J Med Humanit. 2011;32:213–30..
Foi devastador. Todos aqueles anos, todos aqueles tratamentos, todos aqueles fracassos. E eu ainda não tinha explicação para minha dor. Sem solução. Sem caminho a seguir.
Vergonha
Depois de anos procurando respostas e tratamentos falhos, a única conclusão a ser tirada era que não havia nada realmente errado com meu quadril. O dano foi reparado por cirurgia, minha anatomia foi corrigida. Não havia mais falhas a serem encontradas e corrigidas, ficamos sem possibilidades plausíveis. Se não houvesse nada de realmente errado com meu quadril, então, naturalmente, deveria haver algo realmente errado comigo. Na ausência de uma coluna desordenada, deve haver uma mente desordenada22Bunzli S, Smith A, Schütze R, O’Sullivan P. The lived experience of pain-related fear in people with chronic low back pain. In: van Rysewyk S, editor. Meanings of pain. Cham: Springer; 2016. p. 227–50; pág. 231.
Minha autoculpa aumentou exponencialmente.
E eu estava com vergonha. Tão envergonhada. Envergonhada da minha dor. Envergonhada das minhas falhas. Envergonhada por não ter melhorado quando deveria. Envergonhada por não estar lidando melhor com tudo. Envergonhada da pessoa em que me tornei, esta pessoa quebrada, inútil e fraca. Envergonhada por ter deixado minha família e amigos. Envergonhada por ter decepcionado meus profissionais de saúde também. Pessoas de quem gostei muito, pessoas em quem confiava. Pessoas que eu queria dizer que seus tratamentos estavam funcionando, mesmo quando eles não estavam.
Eu estava especialmente envergonhada por ter decepcionado meu marido. Envergonhada por não ser mais a pessoa por quem ele se apaixonou, não mais a pessoa com quem se casou. Eu estava totalmente focada na dor. Dor que exigia tudo da minha atenção, que consumiu todos os meus recursos e pensamentos até não haver espaço para mais nada.
A dor está em tudo
“A dor específica se espalha como uma névoa maligna por todo o mundo experiente”23Leder D. The experiential paradoxes of pain. J Med Philos. 2016;41(5):444–60; p. 255. A dor é vivida. Como experiência. Não apenas sentida ou pensada. Vivida. Quando dura tempo suficiente, a dor impregna todos os aspectos do nosso ser, colore cada pensamento, cada emoção, cada momento, cada história. A dor está em tudo, uma experiência total24Svenaeus F. The phenomenology of chronic pain: embodiment and alienation. Cont Philos Rev. 2015;48:107–22; p. 117. Torna-se a névoa através da qual vemos o mundo, o meio em que vivemos nossas vidas.
Cada decisão em minha vida girou em torno da dor. Acreditar que a dor significava dano, significava cada passo dolorido, cada momento doloroso, significava mais dano. Isso significava que nada poderia ser feito sem premeditação, não importava quantos minutos levava aquela tarefa. O que costumava ser impensado e fácil agora exigia extenso planejamento e esforço. Cada movimento, cada postura, de sentar-se e caminhar para sair da cama. Tanto trabalho para simplesmente deitar, sentar, dar um passo. Na antecipação da dor, eu estava constantemente tensionada, guardando, protegendo, o que só aumentava minha dor. Quando a dor aumentava, aumentava também, minha vigilância e foco na dor, o que só piorava minha preocupação e ansiedade, o que, claro, só aumentava o reforço, a tensão, a guarda e a proteção que aumentavam minha dor… e assim por diante e assim por diante.
Preocupação
“A dor é um habitat ideal para o florescimento da preocupação”25Eccleston C, Crombez G. Worry and chronic pain: a misdirected problem solving model. Pain. 2007;132(3):233–6; p. 234. Minha preocupação certamente floresceu, fertilizada por anos de diagnósticos obscuros e tratamentos malsucedidos. E, também pela linguagem da saúde. Palavras como “disfuncional”, “fraco”, “instável”, “desequilibrado”, “rasgado”, “fora do alinhamento”, “degenerando”, “ferido”, “falhando”. Palavras repetidas com tanta frequência que se tornaram minhas, uma parte do meu sistema de crenças sobre mim mesmo, sobre o que eu poderia e não poderia fazer. Eu ainda me lembro de todos os NÃOs nas minhas prescrições: sem corrida, sem levantamento, sem agachar, sem escalar, sem sentar por mais de 20 minutos… não, não, não. Palavras que vieram me definir, não apenas definir a minha dor.
Depois de falhar em todos os tratamentos, tudo o que restou foram esses rótulos, essas limitações, e nada a fazer a respeito. Eu estava preocupada em nunca conseguir melhorar, que as coisas nunca mudariam. Eu estava preocupada com o futuro, que tudo o que ele continha era dor e sofrimento. Eu estava preocupada com meu relacionamento com meu marido, nossa segurança financeira, nosso futuro juntos. Eu estava preocupada, eu nunca seria capaz de consertar essa dor que causou toda essa preocupação. Preocupada se isso era o melhor que poderia ficar.
Terminando a pesquisa26Toye F, Seers K, Hannink E, Barker K. A mega-ethnography of eleven qualitative evidence syntheses exploring the experience of living with chronic non-malignant pain. BMC Med Res Methodol. 2017;17:116.
Três anos após a pontada, dois anos após a cirurgia, eu fui declarada com dor permanente e estacionária. Um decreto médico-legal de que minha condição tinha estagnado e não havia mais nada a ser feito. Um decreto que eu nunca iria melhorar. Que isso era, de fato, o melhor que poderia acontecer.
“Não há mais nada que possamos fazer.” Uma declaração dita tão livremente, sem qualquer reconhecimento do que isso significa para aqueles de nós que receberam a sentença. E que sentença! Muitas vezes ouvimos essas palavras quando estamos em nosso ponto mais baixo. Quando nós procuramos desesperadamente por respostas, mas ainda não entendemos nossa dor. Quando falhamos em todos os tratamentos. Quando não somos mais nós mesmos e o futuro parece tão escuro e desesperador. Quando não nos sentimos ouvidos, vistos ou compreendidos. Quando parece que ninguém está ouvindo, e nos perguntamos se eles alguma hora já ouviram27Thacker MA, Moseley GL. First person neuroscience and the understanding of pain. Med J Aust. 2012;196(6):410–1.. Quando perdemos tanto e estamos sofrendo muito.
“No início foi uma grande sensação de perda e tristeza, em que não pude distinguir mais nada. Em graus imperceptíveis, tornou-se uma consciência desesperada de tudo o que eu tinha perdido – amor, amizade, interesse; de tudo que foi destruído… todo o castelo arejado da minha vida; de tudo o que permaneci – um vazio e um desperdício arruinado, espalhado ao meu redor, ininterrupto até o horizonte escuro.”
Depois de anos procurando a solução biomédica para minha dor e falhando miseravelmente, depois de chegar ao fundo do poço, minha vida em branco arruinada e desperdiçada, não havia mais nada a ser feito. A única escolha que me restou foi retirar-me do sistema de saúde em definitivo28McGowan L, Luker K, Creed F, Chew-Graham CA. How do you explain a pain that can’t be seen? The narratives of women with chronic pelvic pain and their disengagement with the diagnostic cycle. Br J Health Psychol. 2007;12(2):261–74.. Por pior que parecesse, isso realmente me levou para um caminho diferente.
4. Mudando significados, fazendo sentido
Reconceitualizando a Dor
“Quando essa dor irá embora e a vida real recomeçará?”29Leder D. The experiential paradoxes of pain. J Med Philos. 2016;41(5):444–60; pág. 6. Durante aqueles piores anos da minha dor, aqueles anos de busca em vão por respostas, de perder minha identidade, de vergonha, culpa e preocupação, minha vida estava segura30Bunzli S, Watkins R, Smith A, Schütze R, O’Sullivan P. Lives on hold: a qualitative synthesis exploring the experience of chronic low-back pain. Clin J Pain. 2013;29(10):907–16.. A vida de dor que eu estava vivendo de alguma forma não era minha vida real, assim como eu não era o meu verdadeiro eu. Minha vida real só iria recomeçar depois que minha dor fosse resolvida, consertada, desaparecida.
Nunca me ocorreu naquela época que eu estava vivendo minha vida real. Que era o verdadeiro eu. Que coisa terrível de se pensar na hora. Sendo minha vida real, meu real “eu’’, só se tornou possível quando minha dor passou a significar algo diferente.
Meu caminho adiante foi através da ciência e histórias que me ajudaram a entender minhas experiências e me permitiram reconceituar minha dor e a mim mesmo com a dor. Nos meses anteriores à minha aposentadoria (muito antes do que eu sempre esperava ou desejava), comecei a pós-graduação para obter um mestrado em ciências no movimento humano, na esperança de descobrir a explicação estrutural ou biomecânica para minha dor, e o que fazer a respeito, que ninguém sabia. Como minha pesquisa não saiu como eu esperava, eu optei por desafiar a noção de que havia uma causa única, uma solução única, a ser encontrada para a minha dor.
Em vez da correção, o que descobri foi a validação. Legitimidade. Entendimento. Quando aprendi que a dor é uma experiência emergente complexa sustentada pela biologia e influenciada por uma miríade de fatores psicológicos, sociais e culturais, finalmente senti que minha dor foi validada. Finalmente senti que minha dor era real. Com reais e credíveis explicações científicas para isso. Minha dor não era apenas “toda na minha cabeça”, não era exagerada, não era inventada, não era minha culpa. Eu não era louca, nem fingia ter dor. Não era fraca de espírito, corpo ou personalidade. Foi um alívio imenso. Um fardo foi retirado. Eu não tinha culpa pela minha dor. Ao mesmo tempo, senti que poderia assumir a responsabilidade de como agiria dali para a frente, que eu tinha a capacidade e habilidade para fazê-lo.
Quando eu aprendi quão relevantes os nossos pensamentos, emoções, crenças e expectativas são para nossa experiência de dor, quão influentes são as histórias que contamos sobre nós para nós mesmos e para os outros31Butler DS, Moseley GL. Explain pain. 2nd ed. Adelaide: NOI Publications; 2013. 133 p., finalmente senti que poderia fazer algo. Afinal, somos seres em constante mutação. Adaptáveis, resilientes. Bioplásticos32Moseley GL, Butler DS. The explain pain handbook: protectometer. Adelaide: NOI Publications; 2015. 49 p.. Nossa biologia muda constantemente em resposta ao nosso ambiente, nossos contextos internos e externos, nossas experiências novas e repetidas, até nosso último suspiro33Butler DS, Moseley GL. Explain pain. 2nd ed. Adelaide: NOI Publications; 2013. 133 p.34Moseley GL, Butler DS. The explain pain handbook: protectometer. Adelaide: NOI Publications; 2015. 49 p.35Doidge N. The brain that changes itself: stories of personal triumph from the frontiers of brain science. New York: Penguin Books; 2007. 427 p.. Eu me senti empoderada pela primeira vez em muito tempo. Não tão indefesa e sem esperança. Havia uma esperança realista de mudança.
Abraçando a incerteza
Também passei a reconhecer a incerteza inerente em compreender a dor em toda a sua complexidade. Pode-se esperar que isso seja desanimador, mas, ao contrário, tirou o peso da culpa e da vergonha de todas as minhas falhas nos tratamentos para fora de meus ombros e dos ombros de outras pessoas. Isso aliviou a carga. Não sabemos tudo o que há para saber e… tudo bem. É melhor abraçar a incerteza do que dar às pessoas a falsa esperança de que sua dor é X e que Y vai consertá-la. Quando as explicações não explicam, e as soluções não corrigem, os significados da nossa dor tornam-se cada vez mais ameaçadores, carregando cada vez mais peso, carregando ainda mais consequências.
A honestidade ainda pode ser esperançosa. Sempre há algo que pode ser feito. Podemos sempre contar uma história melhor. Uma história que faz sentido biográfico e biológico e conta um relato melhor da realidade do que o atual36Launer J. Narrative-based practice in health and social care: conversations inviting change. 2nd ed. Abingdon: Routledge; 2018. 164 p.. Uma história que nos ajuda a reconciliar o nosso eu sofrido com o nosso eu verdadeiro, para estarmos inteiros mais uma vez. Nós mesmos novamente.
Outras maneiras de saber
“Arte e ciência são semelhantes em sua busca para revelar o mundo”37Banville J. Beauty, charm, and strangeness: science as metaphor. Science. 1998;281(5373):40–1; p. 41.. As sementes plantadas pela ciência da dor tiveram que ser fertilizadas com coisas fora do domínio da literatura científica também. Para redescobrir meu lugar no mundo, para sentir que pertencia a esse mundo, eu precisava de escritores, poetas e compositores, pessoas que há muito tentam contar a verdade da experiência humana, para me ajudar a dar sentido às coisas. Muitas das minhas verdades foram encontradas nas páginas da literatura do século XIX e nas histórias de Stephen King. Eu vi minha dor, meu sofrimento, eu mesma, em letras de músicas, poemas e filmes. Inúmeras histórias me ajudaram a ver que eu não estava está sozinha, não era uma entidade aberrante, nem um ponto fora da curva.38Loftus S. Pain and its metaphors: a dialogical approach. J Med Humanit. 2011;32:213–30.39Brody H. “My story is broken; can you help me fix it?” Medical ethics and the joint construction of narrative. Lit Med. 1994;13(1):79–92.. Colocar minha dor, e eu mesma, no contexto mais amplo da humanidade ajudou a aliviar meu sofrimento. Lendo literatura, algo que havia abandonado nos anos de dor, abriram a porta para o pensamento criativo novamente. À curiosidade e reflexão. Por meio da ciência, comecei a entender minha dor. Por meio de histórias, comecei a dar sentido à minha vida, para mim mesma, mesmo com dor.
Ameaça atenuante
Compreender que a dor não era um medidor de danos, que não era um reflexo direto do estado dos meus tecidos40Butler DS, Moseley GL. Explain pain. 2nd ed. Adelaide: NOI Publications; 2013. 133 p., significava que a dor não era mais a tal ameaça ao meu futuro, ao meu ser, à minha própria existência. Minha vida não precisava mais esperar até que eu me livrasse dela. Quando os significados da dor se tornaram menos ameaçadores, menos sinistros, menos desesperadores, as sensações que senti em meu quadril – as pancadas, a pulsação e as mudanças, o aperto e estranheza – não significava mais que havia algo realmente errado aí. Eram apenas sensações no meu quadril. Sensações que eu poderia interpretar de forma diferente. Pude perceber as sensações sem medo, sem tanta preocupação, sem ter que cuidar do meu quadril tão vigilantemente. Elas eram estranhas, diferentes. Eu também não precisava fingir que não estavam lá, que a dor não estava lá. A dor não era mais minha inimiga, meu corpo não era mais um traidor. Eu passei a respeitar a dor sem temê-la. Eu podia reconhecer minha dor e ainda continuar vivendo.
Reconectando
Não mais carregada com uma sensação de destruição iminente, com as ameaças diminuídas, eu não estava mais em guerra com minha dor e meu corpo, isso significou que eu finalmente tive a capacidade de me concentrar em outras coisas além da dor. Se a dor não era tão ameaçadora, eu poderia abrir espaço para ela, o que significava abrir espaço para todo o resto. Para todas as coisas que importavam. As pessoas, lugares e experiências que deram sentido à minha vida, que me fizeram sentir como eu.
Reconectar-se com a natureza era uma daquelas coisas, e que eu tinha retirado da minha dor. Enquanto a literatura abriu a porta para o mundo novamente, aventurar-se de volta ao exterior tornou-se literal. Eu não estava mais tão preocupada com que isso ou aquilo estivesse fazendo mal a cada passo doloroso. Eu não tinha que planejar cada movimento, cada momento. Eu estava livre. Não mais tão totalmente dentro do meu quadril e minha cabeça, não mais um prisioneiro da dor, eu vi o mundo novamente, como se fosse a primeira vez. Comecei a tirar fotos, literalmente a ver o mundo por lentes diferentes e com uma nova perspectiva. Foi uma revelação. O mundo ainda estava lá fora, com todos os seus mistérios e maravilhas, apesar da minha ausência dele por tanto tempo. Eu me sentia insignificante da melhor maneira possível. Uma parte de algo muito maior do que eu, muito maior do que minha dor.
“Eu vim uma noite antes do pôr do sol, desci para um vale, onde eu deveria descansar… Eu pensei em algum senso incomum de beleza e tranquilidade, alguma influência suavizante despertado por sua paz, movia-se fracamente em meu peito. Lembro-me de uma pausa, com um tipo de tristeza que não era totalmente opressiva, nem totalmente desesperadora. Eu me lembro quase esperando que alguma mudança melhor fosse possível dentro de mim.”
5. Novos significados, sentido feito
Eu mesma de novo
Alguma mudança para melhor foi possível dentro de mim. As coisas mudaram. Minha vida mudou, minha dor mudou. Eu mudei. Eu me encontrei novamente. Talvez eu tenha me encontrado pela primeira vez. Recuperei meu senso de valor. Eu me tornei completa novamente, não mais quebrada, frágil, fraca. Não mais desconsiderada. Eu estava inteira. Forte, adaptável, resiliente. Gentil, atenciosa, amada e amorosa. Eu era eu. Quanto mais eu me envolvia com as coisas que davam sentido e propósito à minha vida, maior minha vida se tornou, e menor se tornou a dor em relação a essa vida maior. A dor não tinha ido embora, simplesmente não era mais o centro de tudo. E isso foi tudo.
Aceitação
Eu poderia finalmente aceitar a dor como parte da minha história, uma parte da minha experiência, uma parte de mim. A aceitar o ocorrido, minha dor, as mudanças, e todo o sofrimento, a escuridão e o caos, porque não significava aceitar aquilo como meu futuro também. Havia muito mais para minha vida, para mim, do que dor. Muito mais para minha história. E ainda havia muita coisa a ser escrita.
Uma história melhor
Nós somos as histórias que contamos a nós mesmos, e nós mesmos também estamos “sendo formados no que nos é contado”41Frank F. The wounded storyteller: body, illness, and ethics. 2nd ed. Chicago: The University of Chicago Press; 2013. 279 p; p. 55.. Nossas histórias moldam nossa compreensão das nossas experiências. Elas refletem o que passamos e nos ajudam a criar o que ainda está por vir. Por muito tempo, contei uma história sombria. Uma história de dor, perda e desespero. De quebrantamento. E foi essa a história que vivi. Mas as histórias podem mudar. A história que hoje conto da minha dor agora é muito diferente da história que contei a sete anos atrás, ou quatro, ou apenas no ano passado. É uma narrativa em mudança, que oferece a possibilidade de contar uma história melhor a cada recontagem42Brody H. “My story is broken; can you help me fix it?” Medical ethics and the joint construction of narrative. Lit Med. 1994;13(1):79–92..
Removida do caos, removida da ameaça constante de dor, agora vejo minha experiência como uma busca43Frank F. The wounded storyteller: body, illness, and ethics. 2nd ed. Chicago: The University of Chicago Press; 2013. 279 p.. Aquela que me conduziu por um caminho de dor e sofrimento, mas também por um caminho de aprendizagem, descoberta e crescimento, de luz, esperança e possibilidade.
Um caminho que levou para uma melhor compreensão de mim e dos outros. De ser mais gentil e mais compassivo. De ser mais grato pelo que tenho, em vez de me concentrar muito no que perdi. Foi também um caminho que me obrigou a ser mais criativo, a encontrar as formas de me envolver com meus valores dentro das minhas limitações, ao mesmo tempo desafiando gentilmente esses limites de vez em quando para ter certeza de que não estou me limitando desnecessariamente. Eu não sabia que estava nessa busca ao longo do caminho, só posso ver agora que cheguei a este ponto ao longo do caminho44Frank F. The wounded storyteller: body, illness, and ethics. 2nd ed. Chicago: The University of Chicago Press; 2013. 279 p..
Paciência e persistência
Nada disso aconteceu de um dia para outro. Foi um processo gradual ao longo dos anos. Demorou para que as mudanças cognitivas se tornassem mudanças comportamentais, e depois mudanças biológicas. Não foi um processo linear, passo a passo. E houve contratempos. Não importa o quão breve durasse o momento sem dor, quando ela voltava iria muitas vezes me atrapalhar. Trazia de volta os velhos medos, as velhas preocupações e o desespero tão familiar. Era como se eu nunca tivesse tido nenhum momento de não estar com dor. Eu mais uma vez, sentia que havia sido condenada a uma vida inteira de dor, sofrimento e miséria.
Isso aconteceu várias vezes, mesmo com tudo o que eu vim a saber, entender, ver e acreditar. Eu tinha que continuar voltando ao que eu sabia, continuar contando para mim uma história nova e melhor sobre minha dor, continuar repetindo uma história de narrativa mais terapêutica em vez de voltar à velha, familiar e confinante história de dor, deficiência e perda de identidade que vivi tantos anos45Morris DB. Narrative and pain: toward an integrative approach. In: Moore RJ, editor. Handbook of pain and palliative care. New York: Springer; 2013. p. 733–51.. Com o tempo, com um pouco de coragem e muita paciência e persistência, a história nova e melhor venceu.
Médicos e criação de significado
“Não é necessário atingir a recuperação física completa em ordem para curar”46Leder D. The experiential paradoxes of pain. J Med Philos. 2016;41(5):444–60; p. 15.. Quando eu estava nas profundezas da minha dor, nada fazia sentido, não havia nenhum significado, nenhum fim para o meu sofrimento à vista. Foi o caos, nenhuma história coesa a ser contada47Frank F. The wounded storyteller: body, illness, and ethics. 2nd ed. Chicago: The University of Chicago Press; 2013. 279 p.. Howard Brody48Brody H. “My story is broken; can you help me fix it?” Medical ethics and the joint construction of narrative. Lit Med. 1994;13(1):79–92; p. 85. escreveu que quando procuramos tratamento, estamos realmente dizendo:
“Algo está acontecendo comigo que parece anormal, e também não consigo pensar em uma história que vai explicar isso, ou a única história em que consigo pensar é muito assustadora. Você pode me ajudar a contar uma história melhor, uma que me causará menos angústia, sobre esta experiência?”
Conte-me sua história
Há alguns anos, comecei a sentir dores no quadril esquerdo, meu quadril “bom”. Sem perceber, comecei gradualmente a limitar minha vida de novo, sem fazer algumas das coisas que eu adoro fazer, planejando meus movimentos, segurando posturas rigidamente. Comecei a voltar para o estado de dor, mas foi uma reversão lenta, eu podia facilmente racionalizar tudo. Sete meses depois, ainda como essa nova dor, eu assisti a uma demonstração do fisioterapeuta e pesquisador, Peter O’Sullivan, no San Diego Pain Summit. No início da demonstração, ele me pediu para contar-lhe minha história, para começar onde eu quisesse. Surpreendentemente, pelo menos para mim, eu não comecei com o que estava acontecendo em meu quadril esquerdo. Em vez disso, voltei para sete anos antes, quando senti uma pontada, apesar do meu quadril direito nem incomodar na hora.
Eu chorei, percebendo ao contar minha história o quanto eu tinha medo de voltar para aquela época. Eu havia reconstruído minha vida. Eu já trabalhava voluntariamente como treinadora de snowboard adaptativo para pessoas com deficiência, administrava uma organização sem fins lucrativos que cofundei para capacitar pessoas com dor e vivia bem, escrevendo meu blog, viajando, passando tempo com minha família e amigos. Eu podia dirigir de novo, sentar nos móveis, sair para jantar ou tomar um café, coisas simples que um dia jurei nunca mais considerar certas.
E agora eu estava apavorada, temendo perder tudo de novo. Aquela dor se tornaria tudo mais uma vez.
Foi um momento profundo. Eu não dei voz para essas preocupações, esses medos, antes que me pedissem para contar minha história. Nem mesmo para mim. Mesmo com tudo que eu sabia, mesmo com anos vividos com a dor, tendo estudado a dor e trabalhado com a dor, eu ainda precisava de ajuda para entender essa nova dor, esse novo desafio. Eu ainda precisava de ajuda para conectar os pontos e colocar essa experiência em um contexto, para que eu pudesse chegar às minhas próprias conclusões, novos entendimentos e contar uma história melhor sobre essa dor. Aquela que faz sentido biográfico, biológico e coloca as coisas em perspectiva.
Histórias no encontro clínico
As histórias contadas são muitas vezes de tipo biomédico, legitimadas por um profissional de saúde visto como “o especialista” e a “única voz que conta”49Loftus S. Pain and its metaphors: a dialogical approach. J Med Humanit. 2011;32:213–30; p. 227.. A história da gente tende a ser uma série de falhas que foram encontradas no corpo com sua ladainha de rótulos, recheada de diagnósticos ou, talvez pior, diagnósticos descartados. Somos informados de tudo o que há de errado conosco, ou que não há nada realmente errado conosco. Somos informados do que deve ser feito ou que nada pode ser feito, e então a história aí termina.
Muitas vezes não é uma história muito boa. Não é uma história muito útil ou de cura. Essas histórias biomédicas são contadas sobre nós, mas não podemos ser encontrados em sua narração. Muitas vezes, o personagem que falta mais notoriamente nessas histórias é a pessoa com dor. É a história de um cotovelo50van Rysewyk S. A call for study on the meanings of pain. In: van Rysewyk S, editor. Meanings of pain. Cham: Springer; 2016. p. 1–22. ou de um quadril. Somos despersonalizados e assim desumanizados, nossas histórias muitas vezes tratadas como supérfluas, um desperdício de tempo precioso, ao invés de uma forma valiosa de conhecimento que poderia, e deveria, informar o plano de tratamento e o caminho a seguir51Brody H. “My story is broken; can you help me fix it?” Medical ethics and the joint construction of narrative. Lit Med. 1994;13(1):79–92.52Charon R. Narrative and medicine. N Engl J Med. 2004;350(9):862–4..
Não somos máquinas a serem consertadas, nem problemas a serem resolvidos. Somos seres humanos precisando de compaixão e compreensão, orientação e apoio. Precisamos de ajuda para entender o que está acontecendo e determinar a melhor forma de seguir em frente com o que aprendemos uns com os outros. Nossas histórias podem levar a uma maior compreensão de não apenas a nossa dor, mas para uma maior compreensão da dor. Dentro da humanidade compartilhada entre o paciente e o clínico, com toda a incerteza inerente e todas as nossas falibilidades e vulnerabilidades, podem ser elaboradas narrativas terapêuticas que forneçam explicações credíveis para a nossa dor, bem como caminhos realistas para seguir em frente.
Amar e ser amado
O outro momento profundo ao longo da minha jornada ocorreu um ano após minha aposentadoria médica. Eu entrevistei o neurocientista e fisioterapeuta Lorimer Moseley enquanto fazia pós-graduação para um projeto. Eu “espremi” ele por 45 minutos na ciência da dor, ainda acreditando que a minha resposta estaria lá em algum lugar. Que eu descobrisse, mesmo tardiamente, o que precisava fazer para me livrar dessa dor que tanto alterou a mim mesma e minha vida. No final da entrevista, perguntei-lhe qual era a única coisa que ele gostaria que as pessoas com dor crônica soubessem ou fizessem. Sua resposta foi “amar e ser amado”.
Eu fiquei chocada. Existem poucos momentos em nossas vidas que realmente mudam o curso das coisas, e esse foi um daqueles momentos para mim. Foi nesse momento que vi um possível futuro diferente. Foi o que me ajudou a reformular o problema a ser resolvido53Eccleston C, Crombez G. Worry and chronic pain: a misdirected problem solving model. Pain. 2007;132(3):233–6.. Era a luz que eu precisava para guiar o caminho, o empurrão que eu precisava para reconceituar minha dor e ver um caminho diferente a seguir. Um caminho menos focado em se livrar da dor e, em vez disso, focado em voltar às coisas que importavam para mim, o que fez minha vida valer a pena. Foi o que ajudou a mudar minha perspectiva, o que abriu a porta para melhores futuros e o que fez a minha recuperação possível.
As duas coisas mais profundas que os médicos me disseram foram “conte-me sua história” e “ame e seja amado”. Em ambas as ocasiões, eles ouviram minha história e tivemos uma conversa. Eu me senti ouvida, acreditei e validei, o que confirmou meu valor como ser humano e que o que eu disse foi valioso. Isso não pode ser exagerado. Quando nós estamos nas profundezas da nossa dor, quando nos sentimos invisíveis e desprezados, quando não sabemos quem nos tornamos, pode ser muito difícil ver nosso valor. Nossa própria humanidade.
6. Conclusão
Comecei este capítulo dizendo que minha história de dor começou com um passo em falso. Na verdade, ela começou muito antes disso. Cada um de nós passa por todas as experiências de dor em uma vida inteira de aprendizado, memórias e crenças. Uma vida inteira de doenças, ferimentos e recuperações, pensamentos, emoções e expectativas. Com passados e planos para o futuro que afetam nosso presente. Com um senso de quem somos e quem nós continuaremos a ser.
A dor interrompe tudo isso. Interrompe tudo o que parece tão certo e verdadeiro. Tudo que nós pensávamos que sabíamos.
Meu prontuário médico conta a história de um quadril com dor, mas meu quadril não sentia dor. Meu quadril não entendia a dor. Meus tecidos, embora certamente desempenhem um papel na minha experiência, não tiveram nenhuma experiência. Eu tive. Apenas eu. Ainda enquanto era só eu que senti a dor, não fui só eu que senti seus efeitos. A dor afetou aqueles ao redor de mim também. Meus empregadores e colegas de trabalho, meus amigos e familiares, até mesmo com estranhos na rua eu posso ter sido rude e indelicada quando minha dor era insuportável. A dor afetou meu marido e meu cachorro, pois nossa vida juntos foi completamente destruída. A dor mudou tudo. Isso me mudou. As mudanças não foram solicitadas e a pessoa que me tornei era indesejável.
Felizmente, foi para dar sentido à minha experiência, por meio da ciência e das histórias, com a ajuda de muitos guias dentro e fora do sistema de saúde, que a ameaça foi abatida, que meu sofrimento acabou, que a vida foi retomada. Que eu virei eu de novo. Um “eu” diferente, mas ainda eu. Uma pessoa que eu poderia aceitar, um alguém que eu queria ser. Minha experiência de dor e tudo o que ela causou agora pode ser colocado em um contexto mais amplo, uma narrativa ampla. Agora posso contar uma história melhor. Uma história mais coesa, com um alguém coeso54Thompson BL. Making sense: regaining self-coherence. In: van Rysewyk S, editor. Meanings of pain. Cham: Springer; 2016. p. 309–24. em seu centro.
Eu encontrei meu lugar no mundo novamente.
Por mais que eu tenha escrito sobre minha dor ao longo dos anos, aprendi muito escrevendo este capítulo. Isso me forçou a explorar os significados da minha dor ao longo do tempo, o que significava ter que voltar para aqueles anos sombrios e lembrar o máximo que pude. Isto me forçou a destacar os significados que considerava mais salientes, e a mudança dos significados que eram mais relevantes. Isso também me fez pensar na minha recuperação. O que me trouxe onde estou hoje, o que poderia ter me trazido aqui antes. Lous Hesusius55Heshusius L. Experiencing chronic pain in society. Arroyo Grande: CreateSpace Independent Publishing Platform; 2017. 272 p. escreveu em seu livro, Experiencing Chronic Pain in Society, que tudo que ela sempre queria era alguém para ouvir. Parece um lugar sensato para começar a revolucionar nossa compreensão da dor e nossas abordagens para pesquisa e tratamento da dor. Ouça. Nos ouça. Ouça nossas histórias.
Quando nos sentimos ouvidos, validados e compreendidos, isso faz com que todo o resto seja possível. Permite-nos explorar o que significa a nossa experiência e descobrir novas possibilidades. Quando estamos nas profundezas da dor e nossa personalidade é sustentada pela personalidade dos outros, temos a chance de nos recuperar de nosso sofrimento56Cassel EJ. The nature of suffering and the goals of medicine. N Engl J Med. 1982;306(11):639–45..
Quando ouvimos palavras que promovem a cura57Brody H. “My story is broken; can you help me fix it?” Medical ethics and the joint construction of narrative. Lit Med. 1994;13(1):79–92., que enfatizam nossos pontos fortes, coragem e persistência, nossa resiliência e adaptabilidade, temos uma melhor chance de melhores resultados. Quando compartilhamos o poder com nossa equipe de saúde, quando construímos narrativas em conjunto que fazem sentido biológico e biográfico, podemos contar, podemos viver, melhores histórias. Histórias em que somos um agente de nosso próprio resgate58van der Kolk B. The body keeps the score: mind, brain and body in the transformation of trauma. New York: Penguin Books; 2014. 445 p.. Histórias onde nós somos os heróis do nosso conto.