É público e notório que o advento do novo coronavírus pegou a comunidade científica de calças na mão. Porém, a ciência tem seu tempo. Primeiro engole as críticas, depois estuda, experimenta, testa, aprova e por fim, publica. Muito do publicado carece de utilidade prática, mas nem por isso deixa de ser ciência. Por outro lado, as descobertas que resolvem problemas de saúde acabam aparecendo. Foi assim com as vacinas de Pasteur, Salk e Sabin, a penicilina de Fleming, a estrutura do DNA de Watson e Crick… Então, é preciso ter paciência e não fomentar a histeria por ainda não ser possível comprar um comprimido anticoronavírus na farmácia mais próxima. Este post argumenta em torno disso.
A paciência é amarga, mas seus frutos são doces.
Semana passada assisti uma conhecida comentarista televisiva reclamar, presa de ofegante indignação, de que “depois de tanto tempo, com tanta tecnologia etc., nada se sabe sobre o vírus”. Ou seja, estaríamos todos correndo grande risco, não só por causa de uma absoluta falta de liderança central no combate ao vírus, mas por algo muito pior: o desconhecido.
Curiosamente, ela fez esse desabafo após quase 5 meses de um interminável desfile, promovido pelo mesmo canal, de centenas médicos e cientistas vertendo advertências, recomendações, novidades etc. sobre o novo coronavírus, e a doença que provoca, a Covid-19. Como pode ela se declarar tão absolutamente perdida?
Duas razões.
A primeira é a ilusão que os leigos temos de que ciência e medicina são irmãos siameses. Pois não o são. O que um neurocirurgião conhece do cérebro, por exemplo, ainda não passa de 5% do que há ali para se conhecer. O efeito placebo, que leva alguns a se sentir bem ou mal sem justificativa orgânica aparente, ainda é um mistério para ortopedistas e psiquiatras. E sobre os vírus? Bem, sobre eles os infectologistas sabem o que os vírus já conhecidos revelaram – o que, pelo visto nesses últimos meses, é muito pouco em relação ao que ainda há por se conhecer. Enfim, faz pouco sentido reclamar de que pouco ou nada se sabe sobre este vírus, uma vez que algo parecido ocorre noutras frentes da medicina.
A segunda razão é ignorância, mesmo. Nem tudo é obscuro em relação ao novo coronavírus e a Covid-19. Desde que os cientistas e as autoridades de saúde pública do mundo se tornaram amplamente conscientes da dupla em janeiro, eles tiveram seis meses para aprender sobre isso. Três semanas atrás eu postei um resumo das coisas até então conhecidas sobre o vírus e a doença que provoca, a Covid-19.
Esse aporte, baseado numa matéria do The New York Times, obviamente não mencionava o já sabido sobre o vírus. Aliás, sobre os vírus em geral, descobertos por dois cientistas, um russo e o outro holandês, em 1892/98. Que eles não são entidades vivas, por exemplo. Vírus não têm células, não podem transformar alimentos em energia, e sem um hospedeiro, são apenas pacotes inertes de produtos químicos. Mas eles também não estão exatamente mortos: têm genes, se reproduzem e evoluem através da seleção natural. Interessante, não é? Você sabia disso? Bem, agora sabe e talvez isso o motive a higienizar ambiente e corpo com maior frequência e zelo. Afinal, uma dúzia desses mortos vivos andam soltos por aí e são realmente letais.
E nesse post eu tampouco me referi às sequelas que uma pandemia viral deixa atrás depois que arrefece ou some. Um surto de encefalite letárgica ocorrido nos anos 1920 e 1930 na Europa, por exemplo, especula-se que tenha sido consequência da pandemia da gripe espanhola de 1918. Dados de dois estudos que avaliaram sintomas comuns de pacientes internados no hospital com Síndrome Respiratória Aguda Grave (SARS, 2003) e a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS, 2018) descobriram coletivamente que 28% experimentaram confusão, enquanto 33% relataram humor baixo, 36% apresentavam ansiedade, 34% apresentavam problemas de memória e 12% relatavam insônia. No caso da Covid-19, em maio pensava-se que a maioria das pessoas hospitalizadas devia se recuperar sem efeitos prolongados para a saúde mental. Menos de dois meses depois, há fortes indícios de que não só haverá uma Quarta Onda representada com gente sufocando os (poucos) recursos que o sistema de saúde têm para cuidar de distúrbios mentais, mas também os destinados a tratar de problemas pulmonares, cardiológicos e renais já detectados em pacientes recuperados da Covid-19 numa macro-pesquisa escocesa. Saber de tudo isso, convenhamos, pode deixar a quem pensava sair para a balada, ou viajar nas férias, pensando duas vezes.
Por fim, naquela ocasião eu também não apontei as “seis maneiras diferentes de a Covid-19 se manifestar em pacientes infectados”, reveladas semana passada por cientistas britânicos do King´s College London, uma informação que em muito vai ajudar a antecipar tratamentos clínicos ad hoc para cada uma delas. E não revelei porque o artigo, assinado por nada menos que 33 cientistas de uma dúzia de nacionalidades, ainda não fora publicado.
Ou seja, a fila anda. Aos poucos, slowly but surely, mistérios vão sendo revelados, e seus efeitos, até onde possível, imediatamente mitigados. Esse avanço é inexorável. E qual é o meu ponto? Que embora ainda não se saiba o suficiente para acabar de vez com esse vírus & Cia, muito sobre ele já é conhecido graças ao esforço diuturno de milhares de cientistas desde a virada do ano. Para não falar dos bilhões de dólares investidos na pesquisa de medicamentos, testes de diagnóstico, vacinas, EPIs, protocolos laboratoriais e sabe-se lá quantas coisas mais. A ciência não ficou parada. Ela apenas não inventou um contra-vírus que, injetado na metade da população, a faça entender que sem evitar contatos humanos o vírus jamais será controlado. É simples assim.
Portanto, de pouco adianta latir para a lua reclamando que “com tanta tecnologia e depois de tanto tempo ainda não sabemos nada sobre esse vírus”. Declarações como essas, feitas pela TV em horário nobre, são ignorantes, geram incerteza à toa, e em nada contribuem no momento angustiante que o país vive.