Nesses tempos em que o trânsito come o fígado, líderes destemperados acendem os ânimos e o dinheiro continua curto, Mindfulness surge como a bola da vez. Uma opção 100% acessível a qualquer pessoa que desejar acalmar a sua mente para viver melhor.
Desde sempre o blog esteve aberto a profissionais da saúde dispostos a escrever o que sabem sobre a dor e seu gerenciamento. Eu pensei que ocupar de graça um bom meio de comunicação – o blog já apresenta um volume de acessos de gente grande – isso lhes interessaria. Deixar as pessoas a um clique de distância de informações sérias e úteis que eventualmente poderiam trazer aceitação, esperança ou alívio.
A minha oferta, porém, deu em nada. Posso apenas especular sobre as razões. O sonho acadêmico de alguns “sábios” é publicar apenas em revistas científicas. Nada contra, exceto que a mensagem será vista por quase ninguém num país de 210 milhões de habitantes. Outros não gostam de escrever. E há ainda os que talvez achem que um blog como este não valor. Enfim, eu não me importo.
Importo-me, sim, com quem quer transmitir a muitos o que aprendeu sobre dor que possa trazer alívio ao próximo. E “dor” literalmente não se aprende na faculdade, seja de medicina, de fisioterapia, de psicologia… Você sabia disso? Eu não, quando comecei a pensar sobre o tema. É espantoso. Quem carece de saúde geralmente tem dor e, no entanto, quem estuda saúde não recebe treinamento para tratar a dor. Coisa de loucos. Es-pan-to-so!
Mas hoje o assunto é outro: comemorar a primeira colaboração de terceiros recebida em 13 meses. Um post de autoria de uma figura rara, fisioterapeuta, mestre pela Unicamp e especializada em dor orofacial, que decidiu se orientar profissionalmente para o mindfulness. E que em pouco tempo já desponta com luz própria nesse campo do conhecimento – ou será de utilidade pública? – que a cada dia fica mais respeitável do que parecia no início.
Atualmente, o mindfulness está começando a ficar sério, ou a ser visto como algo sério. Abundam pesquisas publicadas nas melhores revistas científicas do mundo – The Lancet, nada menos, é uma delas – atestando o anterior. A sua prática não parece “funcionar” para todo mundo que tem dor, mas para alguns – e principalmente quando em companhia de outras terapias – funciona muito bem e isso é o que importa. Importa a quem sofre com dor, e isso é o único que importa.
O artigo de Michele Peres Ferreira é diferente desses artigos, em todo caso. Para quem tem dor crônica e pouco ou nada sabe sobre mindfulness… é ainda melhor. Flui bem, vai direto nos pontos principais e embora não descreve como exatamente se faz “aquilo”, passa uma mensagem clara sobre o que se pode esperar de uma experiência que – isso todos sabem – não envolve equipamentos, pode ser praticada em qualquer lugar calmo e tem chance de aposentar o Prozac.
Desfrute.
MINDFULNESS, VIVA COM ATENCÃO PLENA
Você já ouviu falar em Mindfulness? Vamos falar sobre esse tema que está em alta?
Segundo Jon Kabat-Zinn, Mindfulness é um estado mental de estar atento à experiência no momento presente, sem julgamento.
Quando traduzirmos a palavra Mindfulness para o português o resultado é Atenção Plena. Isso significa que um dos principais componentes desse estado mental é a atenção.
Diferentemente do que muitos acreditam, meditar não significa contorcer o corpo ou esvaziar a mente. A meditação da atenção plena é como um esporte, se trata de um treinamento de concentração da mente. O Mindfulness é um exercício laico, derivado do Budismo, mas não exige qualquer fé religiosa nem é necessário se tornar budista.
Meditar pode ser difícil, especialmente no início. É como ir à academia. Se você não estiver ofegante nem suando, é provável que não esteja fazendo direito. Da mesma forma, se começar a meditar e logo se encontrar num êxtase livre de pensamentos, ou você se iluminou de repente ou está morto. A prática fica mais fácil com o tempo, mas mesmo após anos de meditação, você irá se distrair muitas vezes.
A meditação nos faz entrar em contato com uma realidade pouco explorada, a nossa voz interna, isso significa que nossa mente está o tempo todo discutindo com ela mesma sobre os fatos do passado ou do futuro, fazendo listas, ensaiando discussões, remoendo coisas etc. É como Mark Twain disse: “Algumas das piores coisas da minha vida nunca chegaram a acontecer”. Isso significa que pensamos muito o tempo todo, e sentimos a carga emocional dos nossos pensamentos, e na maioria das vezes sofremos mais por eles, do que pela própria realidade. Quando não temos consciência desse falatório interior incessante, ele pode nos controlar e nos enganar.
O nosso estado mental nada mais é do que a forma como reagimos e nos comportamos nas diversas situações apresentadas em nossa vida. O interessante é que 70% do nosso estado mental pode ser treinado, sendo apenas 30% dele genético. Isso significa que podemos exercitar e treinar o nosso cérebro a estar mindfull, ou seja, estar atento e consciente para o momento presente. O processo de treinamento do nosso cérebro ocorre através da meditação que explora o controle atencional, o autoconhecimento e a autorregulação emocional.
Quantas vezes você realizou uma tarefa de forma tão automática que nem se deu conta de qual foi o processo para concluí-la? Um exemplo muito comum disso são pessoas que estão acostumadas a fazer sempre o mesmo caminho para voltarem para casa, e que ao chegarem percebem que nem se deram conta do caminho percorrido. Isso significa que você está inconsciente da tarefa que está realizando naquele momento, ou seja, sua mente não está no momento presente, a sua atenção está voltada para os pensamentos: “Preciso comprar leite… Ainda não paguei a conta de luz… Se eu não terminar o relatório até amanhã meu chefe me mata!”; e assim você chega na sua casa sem saber exatamente como.
Nossos pensamentos, em sua grande maioria, costumam ser negativos ou irreais, frutos da nossa imaginação, de coisas que já aconteceram, vão acontecer ou talvez nem aconteçam. Enquanto focamos a atenção para esses pensamentos gastamos energia e tempo com coisas improdutivas. É comum vivermos no passado ou no futuro, esquecendo do momento presente, ocasionando um aumento dos níveis de ansiedade e estresse.
Hoje estamos vivendo em uma era da multitarefa, temos dificuldade de ficar ociosos, qualquer folguinha, nem que seja um minuto, recorremos ao celular, para checar os e-mails, dar uma espiada nas redes sociais e com isso nossa mente entra em um processo de exaustão. Pessoas estão dormindo e acordando cansadas, o cérebro deixa de recuperar a energia pois está sempre em atividade.
O cérebro é um órgão plástico, flexível e treinável, o que torna possível exercitá-lo para modificar o estado mental e aumentar o nível de concentração.1A. Brefczynski-Lewis*, A. Lutz*, H. S. Schaefer, D. B. Levinson*, and R. J. Davidson* Neural correlates of attentional expertise in long-term meditation practitioners. Proc Natl Acad Sci U S A. 2007 Jul 3;104(27):11483-8. Epub 2007 Jun 27.
O treinamento e aprendizado geralmente se dá através de técnicas de autorregulação da atenção com prática da meditação e de outros exercícios afins, permitindo uma maior tomada de consciência de seus processos mentais e de suas ações. As práticas e exercícios de meditação ajudam a alcançarmos essa alteração a nível central.
Ao contrário do que muitos pensam não é porque você começou a meditar que irá virar uma pessoa super calma e sem problemas, mas então qual seria o benefício de se tornar uma pessoa consciente, atenta, mindfull? Através do treinamento de Mindfulness temos como objetivo perceber pensamentos, sensações corporais e emoções no momento que ocorrem, sem reagir de maneira automática e habitual. Com isso, aprendemos a fazer escolhas mais conscientes e funcionais, influenciando positivamente na maneira como lidamos com os desafios cotidianos e em relações interpessoais. Através de Mindfulness, aprendemos a regular as emoções desafiadoras e reduzir aquele discurso interno mental que aparece nas circunstâncias difíceis.
Profissionais da área da saúde estão estudando cada vez mais o Mindfulness e seus benefícios para redução do estresse, ansiedade, aumento da concentração e manejo da dor.
Vamos falar sobre a utilidade dessa ferramenta na dor?
Bom, a dor crônica é frequentemente definida como uma dor que dura mais que 3 meses ou após o tempo normal de cicatrização tecidual e que pode levar a consequências médicas, sociais e econômicas significativas, problemas de relacionamento, perda de produtividade e altos custos com cuidados de saúde.
A alta prevalência e natureza refratária da dor crônica, em conjunção com as consequências negativas da medicação, levou ao aumento do interesse em planos de tratamentos que incluem terapia adjuvante ou alternativas à medicação.
Uma dessas modalidades que os pacientes com dor estão usando é essa meditação que comentamos – Mindfulness. Esse treinamento trabalha reorientando a mente para o presente momento e aumentando a consciência do ambiente externo e das sensações internas, permitindo o indivíduo a reformular as experiências.
Ao incluir o Mindfulness nos tratamentos, os pacientes são encorajados a mudar a maneira como eles se relacionam com a dor, suspendendo o julgamento de pensamentos que acompanham a percepção da dor. Isso desacopla teoricamente a dimensão sensorial da dor da reação de alarme afetivo resultando em uma atenuação da experiência de sofrimento através da reavaliação cognitiva.2Yi Yuan Tang*, Britta K. Hölzel* and Michael I. Posner. The neuroscience of mindfulness meditation. NATURE REVIEWS | NEUROSCIENCE. 16 (2015) 213-225.
Os programas de Mindfulness foram empregados por quase 40 anos para o tratamento de várias condições de dor crônica, incluindo lombalgia, enxaqueca, dores de cabeça e dor musculoesquelética. Muitas vezes, não é possível eliminar a dor, mas o paciente aprende habilidades para viver uma vida produtiva na presença de desconforto ou incapacidade.3Kabat-Zinn J, Lipworth L, Burney R. The clinical use of mindfulness meditation for the self-regulation of chronic pain. J Behav Med. 1985 Jun;8(2):163-90.4Sun TF1, Kuo CC, Chiu NM. Mindfulness meditation in the control of severe headache. Chang Gung Med J. 2002 Aug;25(8):538-41.5Cherkin DC, Anderson ML, Sherman KJ, Balderson BH, Cook AJ, Hansen KE, Turner JA. Two-Year Follow-up of a Randomized Clinical Trial of Mindfulness-Based Stress Reduction vs Cognitive Behavioral Therapy or Usual Care for Chronic Low Back Pain. 2017 Feb 14;317(6):642-644. doi: 10.1001/jama.2016.17814.
Estudos recentes utilizaram neuroimagem para elucidar mecanismos neurofisiológicos e os efeitos subjacentes da atenção plena no cérebro. Uma recente revisão sistemática observou que a regulação da dor pelas técnicas de meditação pode alterar o funcionamento das regiões do cérebro em uma extensa rede, incluindo regiões não nociceptivas. Mas principalmente reduziu a experiência afetiva da dor, enquanto as reduções de intensidade da dor foram menos consistentes. Alterações cerebrais foram demonstradas como resultado da aplicação de medidas psicológicas e pode representar as implicações clínicas de alterações na atividade cerebral ou morfologia.6Simone S. Nascimento, Larissa R. Oliveira, Josimari M. DeSantana, Correlations between brain changes and pain management after cognitive and meditative therapies: A systematic review of neuroimaging studies. Complementary Therapies in Medicine 39 (2018) 137–145.
Estudos de Mindfulness em pacientes com dor tem se mostrado promissores, em relação a sintomas de desconforto relacionado a dor, perturbação do humor, ansiedade, e depressão, bem como a utilização de drogas relacionadas ao controle da dor. Apesar dos resultados positivos, recentes revisões sistemáticas sugerem a realização de estudos de alta qualidade para a recomendação do uso da meditação Mindfulness para sintomas de dor crônica.7Hilton L, Hempel S, Ewing BA, Apaydin E, Xenakis L, Newberry S, Colaiaco B, Maher AR, Shanman RM, Sorbero ME, Maglione MA. Mindfulness Meditation for Chronic Pain: Systematic Review and Meta-analysis. Ann Behav Med. 2017 Apr;51(2):199-213. doi: 10.1007/s12160-016-9844-2.
Portanto, parece que estamos no caminho certo, mas ainda há necessidade de muitos estudos qualificados para se “bater o martelo”, e dessa forma vamos modificando nossas abordagens terapêuticas para uma abordagem mais humanizada, valorizando o ser em todos os seus aspectos e não somente os biológicos.