Tempos atrás publiquei um post sobre os resultados da pesquisa “Percepção do atendimento médico prestado às mulheres com dor crônica”, realizada por mim em parceria com a Faculdade de Medicina de Jundiaí (SP). Mais de mil brasileiras deram a sua opinião a respeito. E ela se distancia do que muitos, no âmbito médico, gostariam de ouvir.
Mas não sei se isso interessa aos que deveriam estar interessados, no Brasil. O tema da pesquisa é desconhecido por aqui e nesse artigo eu provo que, quanto a isso, é o Brasil que está fora do prumo e não o contrário. O acolhimento desigual que a medicina oferece à mulher em relação ao homem já é pesquisado e debatido abertamente em países mais avançados. Evidências científicas para tanto você encontrará a seguir.
“Você não parece estar doente.
Sim, eu sei. Eu sou apenas alguém que inventou como parecer isso e estar cronicamente doente ao mesmo tempo”
“Ser capaz de caminhar sem dor é uma benção comum. Ser capaz de caminhar sem mostrar dor é uma habilidade rara.”
“Doutor, não minimize uma dor que você nunca sentiu.”
No começo de 2020 cogitei pesquisar até que ponto a mulher com dor crônica no Brasil estaria satisfeita com a atenção dada às suas dores por parte do(a)s médico(a)s e de suas equipes. O estímulo para fazer uma coisa dessas – algo incomum, uma vez que eu não tenho interesse acadêmico – vinha do aprendido em inúmeros artigos e vídeos vindos do exterior, ao escrever O PARADOXO DE EVA, um ebook sobre o quanto as mulheres sentem dor, e são tratadas pelos médicos em relação a isso, diferente dos homens.
Inúmeras fontes, a maioria apontando evidências científicas, insinuavam que as queixas de dor das mulheres com dor – dor crônica, especialmente – seriam ouvidas com suspicácia por um número considerável de médicos e médicas, com prejuízo para sua saúde. (A saúde delas, claro.)
Interessante, eu pensei. Há dois ou três anos atrás, aquilo nem teria me passado pela cabeça. A minha criação me levara a crer que a profissão médica não era humana, mas alguma coisa superior, um apostolado celestial etcétera. Teria cabimento uma insinuação dessas?
Então, fui ver meia dúzia de clínicos, três médicos e duas médicas. E falei a eles da minha ideia. Ou melhor, nem cheguei nesse ponto porque o problema a ser pesquisado, segundo ouvi de todos, sequer existia. A mulher com dor crônica era, em geral, uma paciente difícil, queixosa e inclinada a somatizar suas neuras. Mais ou menos isso.
Maior razão para pesquisar aquilo, então.
A pesquisa foi feita, enfim, em parceria com a Faculdade de Medicina de Jundiaí. O seu maior destaque? Veja a seguir
A literatura indica que em vários países desenvolvidos essa atitude do médico, a de mostrar descrédito em relação às queixas de dor do paciente, é uma das mais salientes no caso de mulheres com dor crônica.1[Internet] ncbi.nlm.nih.gov. Acesse o link
- Uma exaustiva revisão de artigos publicada em 2001, confirmou que as mulheres eram menos propensas a receber tratamento agressivo quando diagnosticadas e mais propensas a ter sua dor dispensada pelos médicos.2[Internet] digitalcommons.law.umaryland.edu. Acesse o link
- Das mais de 2.400 mulheres americanas com dor crônica entrevistadas online pelo National Pain Report em 2014, 65% achavam que os médicos levavam a sua dor menos a sério por serem mulheres; e 84% se sentiam tratadas de forma diferente pelos médicos por causa de seu sexo. Aproximadamente a metade ouvira dos médicos as suas dores “estarem apenas nas suas cabeças”.3[Internet] nationalpainreport.com. Acesse o link
- Em um estudo canadense, clínicos gerais e especialistas consideraram pacientes com fibromialgia, na sua maioria mulheres, como “simuladoras e frustrantes”, e alguns médicos até as responsabilizaram pela dor que sentiam.4[Internet] ncbi.nlm.nih.gov. Acesse o link
- Ainda uma outra revisão de estudos demonstrou que quanto mais “inexplicáveis do ponto de vista médico” as condições de saúde apresentadas pelas pacientes, menor o crédito concedido pelos médicos a seus relatos de dor, e por tabela, às próprias relatoras enquanto pessoas.5[Internet] pubmed.ncbi.nlm.nih.gov. Acesse o link6[Internet] pubmed.ncbi.nlm.nih.gov. Acesse o link
Estudos brasileiros semelhantes sugerem que os resultados anteriores não são anômalos, mas são ensaios pequenos, não aleatórios nem controlados.
- Pesquisa publicada em 2008, pelo IBRC (Instituto Brasileiro de Relações com o Cliente) fez referências às queixas mais frequentes de pacientes com respeito ao atendimento médico em consultórios, com destaque especial justamente para comportamentos tidos como pouco afetivos: “desatenção” (36,3%), “falta de acolhimento” (30,0%) e “demora em ser atendido” (27,5%).
- Um pequeno estudo abrangendo 15 mulheres fibromiálgicas, admitiu que “na maioria das vezes elas sofrem caladas, enfrentam discriminação, preconceitos e exclusão. Nesse caso, possuem vulnerabilidade física e social aumentada.” Contudo, elas atribuem aquilo a causas vagas como “opressão” ou “violência simbólica”, e a falta de apoio familiar, sem mencionar o papel do médico no acompanhamento terapêutico, para bem ou para mal.7[Internet] scielo.br. Acesse o link
- Narrativas de 20 mulheres com endometriose entrevistadas sobre a sua experiência com essa dor crônica, publicadas em 2017, destacaram a “trivialização” dos seus discursos por parte dos médicos, e tensões resultantes do fato de o saber laico eventualmente demonstrado por elas parecer um insulto ao saber biomédico oficial.
Em suma:
- Em cada duas mulheres que diz ter dor(es) crônica(s), uma não está satisfeita com a acolhida que o médico ou médica dá às suas queixas em dor.
- Esse dado é estranhamente novo no Brasil, enquanto em países mais avançados ele é conhecido e abertamente questionado até pela mídia.
A razão do interesse, lá fora, é dupla:
- o que explicaria o anterior seria um viés de gênero, uma excrescência em tempos do “Me Too” e o Governador do Estado de New York está a ponto de renunciar por conta de uma assistente tê-lo acusado de “cobiçar” o seu corpo; e
- mais importante, a percepção de não ter as dores legitimadas pelo médico tem consequências deletérias para a saúde física e mental de uma mulher já fragilizada pela doença (ex.: raiva, angústia, baixa autoestima, depressão, desistência do tratamento, doctor shopping etc.).
2 respostas
Eu particularmente sofri isso na pele um bom tempo. Fui chamada até de louca que não tinha o que fazer…até que encontrei uma neurologista que finalmente me escutou de verdade, e depois de quase 5 anos sofrendo com enxaqueca, desmaios, até internação com suspeita de AVC (que também era coisa da minha cabeça), descobriu-se que eu sofria de síndrome do desfiladeiro torácico com piora devido a uma costela a mais na cervical e cervicalgia crônica… um alívio que não tenho como explicar… mas foi uma fase muito difícil, principalmente qdo você é tratada como uma pessoa que só quer atenção e/ou atestado.
Ainda passo algumas dessas, mas com um pouco mais de tranquilidade.
Silvana, o seu comentário tem um valor imenso para mim. Há muito tempo venho usando o blog no intuito de gerar um debate sobre o seu drama. Um drama compartilhado por milhões de mulheres que não têm chance de dizer a médicos, familiares e outros, o que sentem. Não tem sido fácil. Espero que esteja recuperada ou se recuperando da sua síndrome.