A dor é causada por muitos fatores de diversos tipos. Então deveria ser tratada conjuntamente por diversos tipos de profissional da saúde. O psicólogo é um deles. É mesmo?
“A maior descoberta da minha geração é a de que os seres humanos podem alterar suas vidas alterando suas atitudes mentais.”
“Dor é uma experiência subjetiva” – é o que diz a International Association for the Study of Pain, IASP.
Em bom português, dor é o que o paciente, chame Pedro ou Maria, diz que é. E como Pedro e Maria não são apenas únicos e diferentes entre si, mas também carregam cognições, emoções e motivações de todo tipo e intensidade… as coisas se complicam se a ideia for convencê-los a entender um diagnóstico e/ou a assumir o respectivo tratamento.
Eis uma área cinza, se não preta, dos cuidados aos pacientes. Convencê-los da acuidade do diagnóstico e tratamento que lhes é prescrito é crucial porque a dor crônica, por exemplo, traz consequências que claramente provocam mais dor, além de prejudicar os resultados de uma tentativa de alívio e recuperação.
“Desordens psicossomáticas são sintomas físicos que mascaram angústia emocional”.
Apesar da obviedade do anterior, porém, a convocação não parece animar, nem gregos nem troianos. Médicos e fisioterapeutas não estudaram para “isso”, e os psicólogos em geral parecem desinteressados no assunto.
Mas é apenas uma questão de tempo. Se o modelo médico biopsicossocial for minimamente adotado por hospitais e clínicas de saúde de ponta – e sobreviver – o reconhecimento da necessidade de apoio psicológico ao paciente, alguém terá de atendê-la. Eis uma oportunidade para o psicólogo da dor.
Como também o é – uma oportunidade para o psicólogo, quero dizer – que Hipócrates tenha instado o médico a jurar o seguinte:
“Eu estabelecerei o regime dos doentes da maneira que lhes seja mais proveitosa segundo as minhas faculdades…”. Ou, numa outra versão: “Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento”. Ou seja, estados emocionais de pacientes com dor crônica nas costas, ao ponto de atrapalhar o tratamento clínico, ficaram aquém ou além, mas em todo caso de fora, das faculdades ou poderes hipocráticos, o que justifica o(a) médico(a) convocar alguém que manje do assunto: um psicólogo especializado em dor (antes que um psiquiatra, toda vez que a perspectiva de ter que se consultar com este último assusta muita gente).
Tempo atrás eu comecei a escrever umas mal traçadas sobre esse profissional ainda desconhecido no Brasil. Nessa série de posts que aqui começa vou opinar sobre como ele(a) pode contribuir a aliviar um paciente com dor crônica, capacitá-lo à aderir ao tratamento e, de quebra ele próprio – o psicólogo da dor – sobreviver bem profissionalmente.
Antes de mais nada, um esclarecimento. Psicólogo é uma coisa, psicólogo da dor é outra. Como assim? Usando um argumento elástico pode se dizer que todo psicólogo entende de dor. Por definição. Afinal ele(a) existe para aliviar as pessoas de coisas que causam aflição, pena, depressão etc… e no final das contas, dor?
Mais ou menos.
É preciso se qualificar para ser psicólogo da dor. Para assim entender, de cara, que “dor crônica” já é definida como uma doença em si mesma, uma patologia e não apenas um sintoma. E que, graças aos avanços da neurociência no campo da dor, “tratar da dor humana” hoje é uma disciplina médico-científica, como a anatomia ou a neurologia.
Conclui-se então que possuir um canudo e tratar gente emocionalmente perturbada não é credencial suficiente para um psicólogo da dor. Para se qualificar, precisa mais.
E o que mais?
Pelo menos cinco coisas – e nenhuma delas tem a ver com levantar canudos ou certificados de comparecimento a congressos médicos.
Entender o seu papel terapêutico, a primeira. Esse papel não é o de o psicólogo, sozinho, curar clinicamente o paciente, mas o de motivá-lo a se engajar ativamente no esforço – de preferência multidisciplinar – que visa curá-lo (ou ao menos aliviá-lo).
Dominar a nova neurociência da dor, com capacidade para ensiná-la ao paciente, se for o caso, seria uma segunda condição.
Em terceiro lugar vem o conhecimento do que seja um tratamento de dor.
Isto é complicado porque há pelo menos duas modalidades e elas são bem diferentes: a multidisciplinar e “a outra”. A modalidade multidisciplinar é privilégio de quem tem respaldo financeiro para se tratar numa clínica de dor – que costuma ser privada e cujo número total no Brasil atualmente não vai além da centena. Elite é isso aí. A “outra” modalidade de tratamento da dor é a majoritária: um médico ou fisioterapeuta repassa o paciente ao psicólogo quando este parece estar perturbado demais para aceitar ou progredir num tratamento convencional.
Conhecimento sobre dor crônica, em quarto lugar. No caso de pacientes com dor crônica, o tratamento deve ser personalizado. Trata-se de uma doença de causa amiúde inespecífica e consequências psicológicas eventualmente muito severas, entre outras coisas – portanto, um bicho diferente. Agregue-se a isso que o tratamento da dor crônica que está na moda é de natureza multidisciplinar, outro bicho diferente no pedaço.
E por fim, last but not least, conhecimento do paciente que padece de dor crônica. Um veterano de mil batalhas, diurnas e noturnas, consistentemente enfrentadas e perdidas contra a dor durante meses, anos ou décadas. Um sujeito com essas credenciais não é qualquer tipo de paciente. Ele merece ser estudado como uma espécie a parte, de diversos ângulos (cognitivo, fisiológico, emocional…) e em todas suas peculiaridades (ex.: homens e mulheres percebem a dor crônica de maneira diferente). Não é para qualquer um.
Suficiente por hoje. No próximo post vou comentar as diversas contribuições que o psicólogo pode fazer para ajudar o paciente com dor crônica controlar sua dor e ganhar paz de espírito e qualidade de vida. São mais de dez.