Distúrbios musculoesqueléticos crônicos, como dor lombar crônica, continuam sendo um desafio para os osteopatas. A razão é a mesma que explica o fracasso da prática clínica no tratamento e alívio de muitas dores crônicas: o apego a um modelo biológico da medicina. O artigo “Dor, Neuroplasticidade e Medicina Osteopática Manipulativa”, acrescenta um outro ponto de vista, o de que antes de tratar a doença é preciso tratar do paciente.
“Você deve aprender uma nova maneira de pensar antes de dominar uma nova maneira de ser.”
Prólogo do blog:
O modelo biomédico postula que uma lesão nas estruturas anatômicas é o único fator que justifica uma intervenção clínica. Não são poucos os osteopatas que, na prática, tratam exclusivamente áreas de disfunção resultantes de restrições mecânicas que afetam a função fisiológica normal. “Disfunções somáticas”, chamam-se.
Nota do blog:
Disfunção somática é um termo diagnóstico definido como função prejudicada ou alterada de componentes relacionados do sistema somático (estrutura corporal): estruturas esqueléticas, artrodiais e miofasciais e elementos vasculares, linfáticos e neurais relacionados. Ela afeta pessoas de todas as idades e é três vezes mais comum em pacientes do sexo feminino.
A incidência de disfunção somática pode ser avaliada por meio de um prontuário médico validado e padronizado, desenvolvido pela American Academy of Osteopathy for the American Osteopathic Association. Na sua montagem, Sleszynski e Glonek analisaram 3.908 prontuários de pacientes atendidos por mais de 17 meses por 206 médicos osteopatas e 2 osteopáticos bolsistas de pesquisa em medicina manipulativa.
Segundo o averiguado, o diagnóstico de disfunção somática requer pelo menos um dos quatro sinais cardinais de:
- alterações na textura do tecido,
- assimetria dos marcos anatômicos,
- anormalidades na amplitude de movimento e
- sensibilidade (Tenderness, Assimetry, Range of motion modified and Tissue texture changes – TART).
Mais informações, clique aqui .
Apesar de modelos, todavia, distúrbios musculoesqueléticos crônicos, como dor lombar crônica, continuam sendo um desafio para os osteopatas e outros profissionais de saúde.
A razão é a mesma que explica o fracasso da prática clínica no tratamento e alívio de muitas dores crônicas: o apego a um modelo biológico da medicina. Um modelo que trata da doença e não da pessoa. O que, na minha opinião, é quase o mesmo que dizer que não trata da dor.
O artigo “Dor, neuroplasticidade e Medicina Osteopática Manipulativa” (Pain, Neuroplasticity and Manipulative Osteopathic Medicine), publicado pelo International Journal of Osteopathic Medicine, acrescenta um outro ponto de vista: o de que alterações neurofisiológicas estão associadas aos distúrbios musculoesqueléticos crônicos, especificamente nas áreas sensório-motoras e cognitivo-afetivas-motivacionais do cérebro.
Esse enfoque posiciona a osteopatia num patamar mais nobre – e cientificamente mais atualizado – que o que vê a disfunção somática resultando exclusivamente de alterações no tecido, na anatomia, no movimento e sensibilidade. De fato, um crescente corpo de evidências sugere que lesões musculoesqueléticas crônicas estão associadas a mudanças neurofisiológicas em áreas distribuídas do sistema nervoso central.
Assim sendo, apenas a manipulação mecânica não seria solução para essas lesões. É preciso adotar ampliar o enfoque.
Entender as alterações neurofisiológicas fazendo parte de um processo biopsicossocial causador da dor é consistente com muitos dos achados clínicos associados a distúrbios musculoesqueléticos crônicos. No mínimo, afirmam os autores do artigo, as interações paciente-osteopata poderiam assim ajudar a reconceituar crenças e cognições, alterar as respostas comportamentais, e envolver as estruturas do prosencéfalo usando processos autorreguladores e homeostáticos. E também ajudariam a renormalizar as propriedades e a organização em áreas sensório-motoras corticais e impactar o sistema nervoso autônomo.
“DOR, NEUROPLASTICIDADE E MEDICINA OSTEOPÁTICA MANIPULATIVA”
Introdução
Os distúrbios musculoesqueléticos crônicos (MSD), incluindo a dor lombar crônica (LBP), afetam aproximadamente um quarto da população, permanecem desafios significativos de saúde, têm custos sociais diretos e indiretos importantes e resultam em sofrimento pessoal e incapacidade.1Brooks PM. The burden of musculoskeletal diseaseea global perspective. Clin Rheumatol 2006;25(6):778e81. A maioria das consultas de Medicina Osteopática Manipulativa (OMM) é para distúrbios musculoesqueléticos (MSD).2Morin C, Aubin A. Primary reasons for osteopathic consultation: a prospective survey in Quebec. PLoS One 2014;9(9):e106259.3Johnson SM, Kurtz ME. Conditions and diagnoses for which osteopathic primary care physicians and specialists use osteopathic manipulative treatment. J Am Osteopath Assoc 2002;102(10):527. Embora uma revisão sistemática tenha descoberto que a Terapia Manipulativa Osteopática (OMT) é benéfica para a dor lombar (LBP) e fornece maior redução da dor do que o placebo, esses achados foram baseados em um número limitado de estudos sem acompanhamento de longo prazo.4Licciardone JC, Brimhall AK, King LN. Osteopathic manipulative treatment for low back pain: a systematic review and meta-analysis of randomized controlled trials. BMC Musculoskelet Disord 2005;6(1):43. A terapia de manipulação da coluna vertebral (SMT) parece não ter nenhum benefício para a dor lombar crônica em comparação com o tratamento padrão.5Rubinstein SM, et al. Spinal manipulative therapy for chronic low-back pain: an update of a Cochrane review. Spine (Phila Pa 1976) 2011;36(13):E825e46.
O desafio dos praticantes de OMM e outros profissionais de saúde são as pessoas com MSD crônico, como a dor lombar crônica, que costumam responder temporariamente ao OMM e outras formas de intervenção, mas sofrem com dor persistente e limitações funcionais.
Tradicionalmente, o tratamento para MSD crônico tem sido ancorado em um modelo biomédico baseado no paradigma de que a lesão/disfunção estrutural periférica é a única causa de dor e incapacidade. Tratamentos baseados em um modelo biomédico falham, entretanto, em descrever, prever e tratar MSD crônico de forma eficaz.6Foster NE, et al. Understanding the process of care for musculoskeletal conditions why a biomedical approach is inadequate. 2003. Br Soc Rheumatology.
Dentro da OMM, a disfunção somática tem sido o paradigma prevalecente em que as restrições mecânicas afetam os processos homeostáticos autorreguladores, impedindo os processos de cura normais.7Lederman E. The science and practice of manual therapy. Elsevier Health Sciences; 2005. Estudos indicam claramente que, em nível populacional, a relação entre os achados diagnósticos de dano ao tecido periférico e dor é pobre e que a relação entre a ameaça percebida em relação ao movimento e o dano ao tecido é alterada em estados de dor crônica.8Apkarian AV, Hashmi JA, Baliki MN. Pain and the brain: specificity and plasticity of the brain in clinical chronic pain. Pain 2011;152(3 Suppl):S49.9Woolf CJ. Central sensitization: implications for the diagnosis and treatment of pain. Pain 2011;152(3 Suppl):S2e15.10Moseley GL, Flor H. Targeting cortical representations in the treatment of chronic pain: a review. Neurorehabil Neural Repair 2012;26(6):646e52.11Pelletier R, Higgins J, Bourbonnais D. Is neuroplasticity in the central nervous system the missing link to our understanding of chronic musculoskeletal disorders? BMC Musculoskelet Disord 2015;16(1):25. Apesar dessas descobertas, tanto os pacientes quanto os profissionais de saúde continuam a conceitualizar a dor a partir de uma perspectiva biomédica.12Shaw WS, et al. The effects of patient-provider communication on 3-month recovery from acute low back pain. J Am Board Fam Med 2011;24(1):16e25.
O modelo biopsicossocial integra fatores psicológicos e interações sociais com o paradigma biomédico. Embora o modelo biopsicossocial seja um melhor preditor de cronicidade, os resultados do tratamento com base neste modelo permanecem baixos a moderados para o tratamento de MSD crônico.13Foster NE, et al. Understanding the process of care for musculoskeletal conditions why a biomedical approach is inadequate. 2003. Br Soc Rheumatology.14Pincus T, et al. Twenty-five years with the biopsychosocial model of low back pain-is it time to celebrate? A report from the twelfth international forum for primary care research on low back pain. Spine (Phila Pa 1976) 2013;38(24):2118e23. Há um corpo emergente de evidências que demonstra que, além de lesão e disfunção periférica local, alterações neuromoleculares, estruturais e funcionais ocorrem em todo o Sistema Nervoso Central (SNC) em indivíduos com MSD crônico e em dor crônica / síndromes inflamatórias.15Apkarian AV, Hashmi JA, Baliki MN. Pain and the brain: specificity and plasticity of the brain in clinical chronic pain. Pain 2011;152(3 Suppl):S49.16Moseley GL, Flor H. Targeting cortical representations in the treatment of chronic pain: a review. Neurorehabil Neural Repair 2012;26(6):646e52.17Pelletier R, Higgins J, Bourbonnais D. Is neuroplasticity in the central nervous system the missing link to our understanding of chronic musculoskeletal disorders? BMC Musculoskelet Disord 2015;16(1):25.18Apkarian AV, Baliki MN, Geha PY. Towards a theory of chronic pain. Prog Neurobiol 2009;87(2):81e97.19Ward S, et al. Neuromuscular deficits after peripheral joint injury: a neurophysiological hypothesis. Muscle Nerve 2015;51(3):327e32.20Wall JT, Xu J, Wang X. Human brain plasticity: an emerging view of the multiple substrates and mechanisms that cause cortical changes and related sensory dysfunctions after injuries of sensory inputs from the body. Brain Res Rev 2002;39(2):181e215. (Figura 1). Processos neurofisiológicos podem predispor21Baliki MN, et al. Corticostriatal functional connectivity predicts transition to chronic back pain. Nat Neurosci 2012;15(8):1117e9.22Mansour AR, et al. Brain white matter structural properties predict transition to chronic pain. Pain 2013;154(10):2160e8. e / ou contribuir para a fisiopatologia dessas condições23Moseley GL, Flor H. Targeting cortical representations in the treatment of chronic pain: a review. Neurorehabil Neural Repair 2012;26(6):646e52.24Pelletier R, Higgins J, Bourbonnais D. Is neuroplasticity in the central nervous system the missing link to our understanding of chronic musculoskeletal disorders? BMC Musculoskelet Disord 2015;16(1):25.25Wand BM, O’Connell NE. Chronic non-specific low back pain – sub-groups or a single mechanism? BMC Musculoskelet Disord 2008;9(9):11.l 2006;25(6):778e81.. Estudos em animais e humanos demonstram que o sistema neuro-musculoesquelético e o córtex interagem continuamente, e que lesões periféricas e mudanças associadas na estrutura e função alteram essa interação.26Wall JT, Xu J, Wang X. Human brain plasticity: an emerging view of the multiple substrates and mechanisms that cause cortical changes and related sensory dysfunctions after injuries of sensory inputs from the body. Brain Res Rev 2002;39(2):181e215. Pesquisas em animais e humanos demonstram que mudanças neuroplásticas ocorrem rapidamente com mudanças na produção sensorial e comportamentos no Sistema Nervoso Central (SNC)27Classen J, et al. Rapid plasticity of human cortical movement representation induced by practice. J Neurophysiol 1998;79(2):1117e23. e concomitantemente com lesão estrutural periférica e mediadores inflamatórios.28Barr AE, Barbe MF, Clark BD. Work-related musculoskeletal disorders of the hand and wrist: epidemiology, pathophysiology, and sensorimotor changes. J Orthop Sports Phys Ther 2004;34(10):610e27.29Coq JO, et al. Peripheral and central changes combine to induce motor behavioral deficits in a moderate repetition task. Exp Neurol 2009;220(2): 234e45. Essas mudanças neurofisiológicas em indivíduos com MSD crônico são consistentes com achados experimentais e clínicos de transmissão sensorial alterada, incluindo amplificação sensorial da dor30Latremoliere A, Woolf CJ. Central sensitization: a generator of pain hypersensitivity by central neural plasticity. J Pain 2009;10(9):895e926., mudanças de controle motor, como padrões de recrutamento muscular alterados31Hodges PW, Tucker K. Moving differently in pain: a new theory to explain the adaptation to pain. Pain 2011;152(3 Suppl):S90e8., mudanças nos processos perceptuais, incluindo imagem corporal alterada,32Tsay A, et al. Sensing the body in chronic pain: a review of psychophysical studies implicating altered body representation. Neurosci Biobehav Rev 2015;52:221e32. traços psicológicos, como catastofização e somatização, e mudanças comportamentais, como a evitação do medo.33Simons LE, Elman I, Borsook D. Psychological processing in chronic pain: a neural systems approach. Neurosci Biobehav Rev 2014;39:61e78.
Figura 1
Esses achados podem ter implicações importantes para o tratamento de MSD crônico com OMM. O presente artigo tem como objetivo (1) destacar as descobertas importantes de alterações neuroplásticas distribuídas em áreas do SNC em indivíduos com MSD crônico e estados de dor crônica, e (2) fornecer recomendações sobre como essas descobertas podem influenciar a OMM no tratamento de pacientes sofrendo de MSD crônico, utilizando as melhores evidências disponíveis.
Abreviações
ANS | Sistema nervoso autônomo |
CC | Córtex Cingulado |
CNS | Sistema nervoso central |
CRPS | Síndrome complexa de dor regional |
DLPFC | Córtex Pré-frontal Dorsolateral |
HPA | Hipófise Adrenal da Hipófise |
LBP | Dor lombar |
LRJT | Tarefa de Julgamento Esquerda-Direita |
M1 | Cortex Motor Primário |
MPFC | Córtex Pré-frontal Medial |
MSD | Distúrbio musculoesquelético |
MT | Terapia manual |
OMM | Medicina Osteopática Manipulativa |
OMT | Terapia Manipulativa Osteopática |
PAG-RVM | Periaquedutal Cinza – Medula Rostroventral |
PFC | Córtex pré-frontal |
PLP | Dor no membro fantasma |
S1 | Córtex Somatosensorial Primário |
SII | Córtex Somatosensorial Secundário |
SEP | Potenciais evocados somatossensitivos |
SMT | Terapia Manipulativa da Coluna Vertebral |
VLPFC | Córtex Lateral Pré-frontal Ventral |