A percepção da percepção da dor nos tempos antigos (e tempos não tão antigos)
Durante a maior parte da história da ciência médica acreditou-se que a dor funcionasse mais ou menos como o filósofo francês René Descartes descreveu: um sistema de sinalização simples.
- A carne está ferida. (“É apenas uma ferida superficial!”))
- Os nervos enviam uma mensagem inequívoca ao cérebro sobre os danos. A intensidade da mensagem é diretamente proporcional à severidade do ferimento.
- O cérebro interpreta essa mensagem sem discutir o seu valor de face -isto é, se a mensagem diz, “há algum dano ruim aqui,” nós acreditamos.
Com base neste modelo, quase todos ainda- hoje, em 2018- assumimos que qualquer mensagem enviada para o cérebro por um certo tipo de nervo vai sempre causar dor. Profissionais da saúde em todos os lugares ainda acreditam que o nervo está “enviando dor”, que o sinal é dor, e, portanto, esses nervos são habitualmente chamados de “fibras de dor” e suas mensagens são chamadas de “mensagens dor, “. Isto é errado! E é pior do que uma simplificação excessiva.
“A rotulagem de nociceptores como fibras de dor não foi uma simplificação admirável, mas uma banalização infeliz disfarçada de simplificação.”
Por várias décadas agora, tem ficado claro para os cientistas da dor e neurologistas que este simplório modelo da fibra de dor é irremediavelmente impreciso. Na verdade, eles o chamam de “a visão ingênua”!1Veja Gawande: nova compreensão científica da percepção emergiu nas últimas décadas, e ele tem virado clássico, séculos de crenças sobre como o nosso cérebro funciona-embora aparentemente não penetrou o mundo médico ainda. A velha compreensão da percepção é o que os neurocientistas chamam de “visão ingênua”, e é a visão de que a maioria das pessoas, dentro ou fora da medicina, ainda tem. Estamos inclinados a pensar que as pessoas normalmente percebem as coisas no mundo diretamente. Acreditamos que a dureza de uma rocha, a frieza de um cubo de gelo, a coceira de um suéter são captados por nossas terminações nervosas, transmitidas através da medula espinhal como uma mensagem através de um fio, e decodificada pelo cérebro”. Mesmo gusanos microscópicos com apenas dois nervos problemáticos detectáveis, em comparação com os nossos bilhões, têm experiências de dor mais ricas do que isso, sendo a sua dor uma “opinião”-uma experiência interpretada, com alguma surpreendente sensibilidade em relação ao contexto.2Veja Sensation on a Small Scale. E certamente isto faz total sentido evolutivo. A dor é claramente mais útil como experiência quanto “mais inteligente” ela for.
Assim sendo, a dor trabalha realmente de maneira muito mais complicada, interessante, e em algumas maneiras útil. Um nervo nunca deveria ser chamado de “nervo da dor”. Ele não detecta “dor”. Ele só detecta algum tipo de estímulo no tecido… e o cérebro decide o que fazer com ele, como se sentir sobre isso, e o que fazer sobre isso, se decidir fazer alguma coisa.
O que sobe, deve descer
A dor é menos dolorosa quando estamos confiantes de que estamos seguros. Este princípio foi demonstrado no início da história da pesquisa sobre dor por um famoso paper sobre soldados feridos na Segunda Guerra Mundial, apontando que estes experimentaram surpreendentemente pouca dor, considerando a severidade de seus ferimentos, provavelmente porque estavam felizes de estar fora do campo de batalha.3Beecher HK. Relationship of significance of wound to pain experienced. JAMA. 1956 agosto; 161(17):1609–1613. #13345630 PubMed. Desde então, pesquisadores têm tentado compreender aquilo. Embora muitas perguntas permaneçam a ser respondidas, nós, hoje, parecemos ter um esboço de resposta, ainda que grosseiro.
O cérebro não é apenas um receptor passivo, ingênuo, frente a qualquer mensagem que os nervos periféricos enviam para cima. E, se você pensar sobre isso, é um pouco estranho que algum dia tenham pensado que assim fosse, porqueé, afinal, do cérebro que estamos falando: asento da consciência, o gerador de sua realidade. O cérebro avalia criticamente cada mensagem de perigo que recebe — considerando-a em contexto, avaliando-a antes de decidir se deve ou não levá-la a sério.
“Uma vez que uma mensagem de perigo chega ao cérebro, este tem que responder a uma pergunta muito importante: ‘quão perigoso é isso realmente?’ A fim responder, o cérebro examina cada parte de informação credível-exposição precedente, influências culturais, conhecimento, outros sinais sensoriais-a lista é infinita.”
Como se isso não complicasse as coisas o suficiente, uma vez que seu cérebro toma uma decisão, ele também envia mensagens para baixo que realmente afetam a sensibilidade e o comportamento dos nervos.4Jackson M. Pain: The science and culture of why we hurt. Paperback Ed. Random House; 2003. Assim, tudo o que dói envolve uma conversa, uma espécie de debate entre os sistemas nervosos central e periféricos.
Poderia ser dramatizado assim:
Nervos | Tem problemas aqui! Problemas ruins! Alerta vermelho! |
Cérebro | Sim? Certo, anotado. Mas quer saber? Eu tenho acesso à informação-Desculpe, é classificada, você só tem que acreditar na minha palavra que sugere que não temos que nos preocupar muito com isso. |
Nervos | Estou a dizer-te, isto é sério! |
Cérebro | Não, eu não acredito. |
Nervos | Olha, eu posso não ter acesso a essa “informação” que você está sempre falando, mas eu conheço o que é dano no tecido, e eu não estou brincando, isso é uma ameaça credível, e eu vou continuar falando sobre isso. |
Cérebro | Na verdade, você está tendo problemas para lembrar qual é o problema. Você vai me enviar menos mensagens por um tempo. |
Nervos | Uh, certo. O que eu estava dizendo? Deus, parece que apenas um segundo atrás eu tinha algo importante para dizer, e já se foi. Eu vou voltar para você mais tarde, eu acho… |
O cérebro pode mandar nos nervos, dizer-lhes o quão sensível devem ser. Quando ansioso, o cérebro pode pedir “mais informações” dos nervos periféricos, ordenando-lhes para produzir mais sinais em resposta a estímulos menores. Ou pode fazer exatamente o oposto. Há uma extensa evidência recente de que os nervos periféricos podem até mesmo fisicamente, quimicamente, mudar, talvez em resposta a solicitações cerebrais, condições de tecido, ou ambos. Para estender a analogia, isso não é apenas girar o botão do volume, mas mudar o equipamento de som, mudando o sinal antes mesmo dele chegar ao “amplificador”.
(Apenas por curiosidade, dê uma olhada na versão complexa do diagrama). Mostrar
Em resumo, as mensagens não apenas sobem até o cérebro, elas também descem. Esta funcionalidade de duas vias no sistema de dor é a principal diferença entre a ciência da dor moderna e da ciência da dor da velha escola.
Mas a maior parte da modulação é provavelmente central: só sentimos o que nossos cérebros nos permitem sentir. Mesmo mensagens sensoriais “ruidosas” podem ser filtradas para quase nada pelo sistema nervoso central… ou, por outro lado, mensagens sensoriais “silenciosas” podem ser amplificadas. A qualidade e intensidade da experiência final é claramente o produto de um intrincado conjunto de filtros neurológicos.
“Talvez muitos pacientes que os médicos tratam como tendo uma lesão nervosa ou uma doença têm, em vez disso, o que poderia ser chamado de ‘síndrome do sensor’. Quando a luz de advertência do painel do seu carro continua dizendo que há uma falha do motor, mas a mecânica não consegue encontrar nada de errado, o próprio sensor pode ser o problema. Isso não é menos verdade para os seres humanos. Nossas sensações de dor, coceira, náusea e fadiga são normalmente protetivas. Dissociadas da realidade física, no entanto, elas podem se tornar um pesadelo… centenas de milhares de pessoas apenas nos Estados Unidos sofrem de dor nas costas crônica, fibromialgia, dor crônica pélvica, zumbido, desordem comum temporo mandibular, ou lesão por tensão repetitiva, onde, tipicamente, nenhuma quantidade de imagem, teste de neural, ou cirurgia consegue descobrir uma explicação anatômica. Os médicos persistiram em tratar essas condições como problemas de nervo ou de tecido — falhas do motor, enfim. Levantamos o capô e removemos isso, substituímos aquilo, cortamos alguns fios. No entanto, o sensor continua a piscar.
Assim, ficamos frustrados. ‘Não há nada de errado,’insistimos. E, a próxima coisa que você sabe, estamos tratando o motorista em vez do problema.”